| Introdução
Esse post foi baseado no artigo NieR (De)Automata: Defamiliarization and the Poetic Revolution of NieR:Automata, da autora Grace Gerrish. Este texto contem spoilers, e será dividido em duas partes para não se tornar extenso demais.
Estranhamento é uma técnica artística que consiste em apresentar ao público algo familiar em um contexto estranho, ou de forma incomum, para aumentar a percepção sobre o que é familiar. O conceito de estranhamento, é como uma forma de violência poética contra os limites de convenção, o mecanismo pelo qual os gêneros evoluem, e a força motriz por trás do que cria a própria linguagem poética. A definição de poético aqui não está associada a poesia, mas sim à linguagem que foi colocada em primeiro plano, organizada de maneira a tornar o leitor consciente disso.
Por exemplo, quando o poeta Carl Sandburg descreve como “O nevoeiro vem/ em pequenos pés de gato”, ele sugere uma forma diferente de se olhar o nevoeiro, como um gato. Então, o que era conhecido, o nevoeiro, vira desconhecido, e cria a necessidade de uma nova visualização de como seria o nevoeiro e do seu movimento, assim se tornando mais familiar novamente. Temos, então, um processo que pode ser divido em três partes: estranhamento, desaceleração por parte do leitor, e a renovação da percepção. Isso pode ser aplicado não apenas para a poesia, mas para um jogo.
Yoko Taro é o responsável pela produção do jogo Nier Automata. Durante anos, seu trabalho se definiu pela constante necessidade de subverter as expectativas e reimaginar os limites do gênero dos videogames. Em uma apresentação de 2014, Yoko sugeriu que “Como nos filmes e livros, exemplos de cultura que amadureceram, talvez também estejamos entrando em um beco sem saída”.
Em outras palavras, a linguagem dos videogames tornou-se automatizada e limitada pelo que ele chamou de “muro invisível” que a indústria construiu entre as convenções padronizadas do meio e todo o seu potencial. Sua principal preocupação é que videogames sejam mais que jogabilidade inovadora, havia necessidade de uma reconstrução para essa mídia.
No ano de 2017, ele levou esse ideal para o mercado de AAA na forma de NieR: Automata, na qual ele não apenas experimenta os tipos de estranhamento fundamental possibilitados pelo meio, mas usa a estrutura geral e a narrativa para guiar o jogador através do jogo para o processo circular de estranhamento, e suas revoluções regenerativas constantes.
| A névoa vem em pequenos pés de Android
O jogo, ambientado dez mil anos no futuro, segue dois androides de elite “YoRHa”, o modelo 2B e 9S, enquanto lutam em uma guerra para recuperar o planeta Terra para seus mestres humanos, que se retiraram para a Lua.
Seus inimigos são chamados de máquinas. A informação que é passada para os dois é que estes foram enviados pelo exército alienígena invasor. No entanto, os dois Androides em seu caminho passam a conhecer máquinas que são inteligentes, complexas emocionalmente e apresentam muito mais similaridade com os androides do que eles esperavam.
Isso bagunçou a cabeça de 2B e 9S a ponto deles questionarem o propósito da guerra e a legitimidade do Conselho da Humanidade. A verdade vem a tona quando é descoberto que não existem mais humanos e nem alienígenas. Com isso temos uma crise existencial ao perceber que, na verdade, as unidades YoRHa foram criadas para impulsionar um ciclo perpétuo de uma guerra sem sentido.
Nos jogos, a forma de linguagem mais básica que vemos são as mecânicas de combate e de posicionamento de câmera. Logo no início, Yoko Taro mostra diversas formas de como desconstruir nosso conhecimento sobre como cada gênero funciona.
A introdução poética de Nier ocorre nas opções de design, pois o jogador não apenas é impedido de se sentir confortável com qualquer estilo de jogo, com a mudança frenética de perspectiva, passando de hack and slash para bullet hell, mas também é forçado a contemplar suas expectativas em relação ao gênero, à medida que evolui durante o ato de meia hora.
Sequências posteriores também apresentam essas mudanças de estilo, mas não é coincidência que a “abertura” do jogo, junto com a faixa “Alien Manifestation”, que pode ser traduzida do japonês mais literalmente como “o que não é familiar está aqui”, muda entre eles tão rapidamente. Esses elementos são alguns dos mais palpáveis para o público mais amplo de videogames, portanto, o jogo começa propositadamente com um curso intensivo sobre como a estranheza deve operar.
Obviamente, esses não são os únicos tipos de mudanças de perspectiva. Quando o jogo muda do ponto de vista de 2B para o 9S, o jogador recebe um novo conjunto de mecânicas de combate e uma nova estrutura narrativa, como a capacidade do 9S de “ouvir as máquinas” o que permite ao jogador ver as máquinas sob uma nova perspectiva. Para ter uma melhor compreensão desse jogo é essencial fazer todos os finais verdadeiros, pois cada um deles permite uma nova experiência que é necessária para entender a grandiosidade da obra proposta por Yoko Taro.
Antes de iniciarmos a segunda jogatina controlando o 9S, o jogador passa a controlar a Friedrich, uma pequena máquina que está pegando óleo com um balde para tentar reviver seu irreparável “irmão”. O impacto é grande nesse momento, pois você, como Android, matou várias máquinas como essa. O robô lento e atrapalhado promove uma simpatia por seu desamparo.
Inevitavelmente, o jogador tropeçará em um dos tubos aparentemente imperceptíveis que cobrem o chão, derrubando o balde. A caminhada de volta ao bico de óleo é meticulosamente longa, forçando o jogador a desacelerar e ter imersão na experiência do corpo desconhecido de Friedrich.
Outro caso que o videogame tenta proporcionar estranheza, e subverter as expectativas do jogador, é em uma missão chamada “Caça ao tesouro no castelo”. Essa missão é dada por uma máquina comum. Nela, o jogador guia 2B e 9S em direção ao marcador do mapa que indica a localização do “tesouro”. Este tesouro se encontra em um castelo no meio da floresta, que é habitado por máquinas.
Durante a busca, os androides matam diversas máquinas, e por último o guardião, para então encontrar o corpo coberto de musgo do antigo rei das máquinas do Reino da Floresta. O tesouro não é dinheiro ou armas, mas uma carta dos habitantes da floresta elogiando a generosidade do rei, cuja sepultura o jogador acabou de contaminar, e cujo fiel guardador eles acabaram de matar.
Quando o jogador retorna à primeira máquina, ele expressa ódio pelos habitantes da floresta e elogia os andróides por cumprir sua verdadeira missão: “Mais uma vez obrigado por tornar todos eles extremamente mortos”.
No nível narrativo, a máquina enganou os andróides para dispensar sua própria violência, mas o jogador foi enganado pela interface do usuário, que chama a missão de “caça ao tesouro” e promete um conjunto de atualizações chamativas. Esse tipo de subterfúgio acontece diversas vezes, criando um relacionamento no qual o próprio design do jogo colabora com os NPCs para exigir esses momentos de violência ou vingança, e deixa o jogador questionar a confiabilidade do jogo.
Um aspecto crucial do estranhamento, é que quando ele usado com muita frequência, acaba por se tornar o normal. Por isso, o jogo apresenta missões que se assemelham mais ao que podemos esperar do gênero, preenchendo aquela necessidade de ser heroico e ajudar os personagens. Em uma delas, recuperamos remédios para uma máquina que cuida de animais da floresta.
Mas esse tipo de missão no jogo é espalhada por uma distância de tempo suficiente no jogo, de forma que essas missões causam o estranhamento no jogador, e seu impacto emotivo é muito mais profundo. Portanto, até o que é comum em outras obras, se torna estranho se feita de maneira correta.
As músicas também são usadas no jogo para causar estranheza. A maioria das músicas apresenta variações dentro do jogo, passando de “Dinâmica”, “Média”, “Silenciosa” e “8-bit”, dependendo do contexto. A faixa “Wretched Weaponry” (por si só estranha devido à combinação de vocais industriais e batidas fortes) é usada em sua forma “dinâmica” quando 2B heroicamente luta para atravesar a fábrica abandonada, mas usada em sua “versão silenciosa” após o suicídio em massa dos seguidores de Kierkegaard no mesmo local. Isso não apenas cria uma melancolia, refletindo o repentino vazio da fábrica, mas também altera a experiência do jogador da versão dinâmica durante as gameplays subsequentes, imbuindo a orquestração heroica com um eco de morte iminente.
Sobre o idioma que as músicas são cantadas, de acordo com a letrista Emi Evans, que também fornece vocais para grande parte da trilha sonora, cada música é cantada no que ela chama de “linguagem do caos”, desenvolvido pegando uma linguagem, respeitosamente manipulá-la, e então envelhecê-la 10 mil anos.
A ideia não é simplesmente criar palavras sem sentido, mas manipular e “desautomatizar” os padrões de fala, para que soem vagamente familiares a quem conhece inglês, alemão, francês ou gaélico, mas também sejam universalmente alienígenas, já que as músicas em inglês ou alemão caóticos, concentram-se em padrões fonéticos comuns em vez de palavras com sentido. Talvez a resposta visceral que jogadores e críticos tenham dado a essas canções possam ser melhor explicada por Eichenbaum, de que “as palavras são uma necessidade humana, mesmo que não sejam significantes”.