Introdução
O site Garota no Controle estará lançando uma série de artigos sobre a prática do crunch nos estúdios de desenvolvimento de games espalhados pelo mundo. Será feita em quatro partes, sendo esta a primeira. O intuito é elucidar um pouco do ambiente de produção dos games em meio a essa prática, que por anos tem sido desmentida, não muito comentada ou discutida, com suas consequências negativas muitas vezes negligenciadas, ou mostradas como “parte do processo”, mas que recentemente tem tido cada vez mais dificuldades em se manter como algo viável, defensável.
Em que o crunch consiste?
O crunch, prática frequente que também tem sido chamada de crunch culture (cultura do crunch) ou crunchtime (hora do crunch), consiste em atribuir tempo extra a um projeto e é um dos maiores assuntos em voga atualmente no mundo dos games. Porém, não por motivos animadores, sendo eles: prazos curtos de entrega para games de alta escala em desenvolvimento, exigência de cada vez mais ajustes em jogos próximos de seu lançamento, aumento da carga horária dos desenvolvedores de jogos (também conhecidos como gamedevs ou videogame developers/VGDs), com o objetivo de alcançar as metas de última hora propostas pelos estúdios responsáveis pela produção.
Essas são algumas das justificativas do uso de crunchtime endossadas pelas empresas aos seus profissionais, mas não de uma forma pura e simplesmente de passagem de incumbências e sim envelopada com uma carga emocional, reforçando para que o desenvolvedor siga com o grande sonho de fazer parte da equipe de gamedevs.
Erin Hoffman – The EA Spouse Letter
Para todo acontecimento, existe o início. Em 2004, uma época onde o termo “crunch” (ou “crunch time”) era raramente conhecido, e quando utilizado, isso acontecia em momentos específicos de términos da parte operacional de um projeto, em sua maioria da área tecnológica, resumindo-se em algumas horas a mais para que todas as tarefas fossem terminadas e algum benefício posterior fosse alcançado. Geralmente folga para os colaboradores, ou oportunidade de se aproveitar um bom momento do mercado, visando um maior retorno financeiro ou mudança de foco para um novo projeto.
O primeiro indício de que o crunch estava se tornando uma prática abusiva recorrente, um modus operandi dentro de desenvolvedoras de jogos, foi quando uma carta anônima foi descoberta, na data de 10 de novembro de 2004, vindo a ser conhecida como a EA Spouse Letter. Nela, uma esposa de um dos trabalhadores da desenvolvedora EA (Electronic Arts) relata a situação de estresse corriqueiro presente em seu cônjuge.
Na época, por temores de sofrer represália, não só contra ela como também sua família, Erin Hoffman, a autora da carta, decidiu se manter no anonimato. Apesar de saber da necessidade de se expor toda a situação que seu esposo e tantos outros profissionais da área estavam passando, ela sabia que estava mexendo em um vespeiro muito maior do que ela poderia lidar sem apoio aparente da comunidade. Erin atualmente é conhecida como uma grande ativista na luta contra abusos trabalhistas na indústria de games. É escritora, game designer, comunicadora e é, até a atual data, líder do setor de pesquisa e desenvolvimento do Google Stadia.
Imagens de Erin Hoffman, game designer e escritora, chefe da R&D do Google Stadia. Autora da carta conhecida como EA Spouse Letter. Fontes: esq – https://bit.ly/3aWAKH8 ; dir. – https://bit.ly/3n9slCH
Segundo o que diz a carta, a EA sempre foi vista pela mídia como uma ótima empresa para se trabalhar. Esse slogan do grande paraíso do desenvolvimento de jogos atribuído à ela (e mais tarde a outras empresas do ramo) fez com que diversos gamedevs procurassem uma forma de ingressar no espaço. Erin ao ver seu noivo na época, o ex-funcionário da EA Leander Hasty tendo problemas de saúde, e ao mesmo tempo comparando o andamento de seu trabalho que se encontrava em dia e de toda sua equipe, e os lucros da empresa ultrapassando o bilhão anual naqueles anos, ela questiona: “Qual seria a necessidade do crunch?”.
A decisão de publicar a carta
No momento em que a carta é publicada, todo esse caso acarreta uma torrente de exigências de melhores condições de trabalho vinda dos funcionários e colaboradores da empresa e de toda a comunidade desenvolvedora de jogos. Denúncias via mídias públicas, processos levando a empresa a ter que arcar com dezenas de milhões de dólares com indenizações. O prejuízo, como era de se esperar, força para que mudanças de conduta em como lidar com os gamedevs sejam implementadas.
Sede da desenvolvedora e distribuidora Electronic Arts, Cidade de Redwood, California, EUA. Imagem:Fonte: https://bit.ly/3bjnaO4
Entretanto, a mesma carta também mostra que a realidade da EA é de que existe nela uma cultura consolidada de rotatividade de profissionais (cerca de 50% de todo o contingente), onde qualquer garantia de direitos trabalhistas e condições de trabalho são trituradas no meio de todo um processo corrido e temporário de produção de games. Processo este que custa milhões do orçamento e que precisa ser terminado em tempo recorde, reforçado pela legislação frouxa que exclui os profissionais da área como uma categoria trabalhista plena, dando margem para que se mantenha o crunch.
Elementos de última hora na produção de games
Ao pesquisar sobre crunch, qualquer pessoa se depara com o fato de que a prática em questão não surge do nada e sim situações diversas favorecem a formação do quadro. Dentre as várias, uma das mais importantes é a da adição de elementos de última hora no processo de produção de games, e a importância é atribuída também por ser uma das causas do crunch que mais tem aparecido nas mídias informativas especializadas do setor, nos últimos anos.
Batizada por alguns gamedevs de “Feature Creep”, é uma das formas de se referir a todos as características que surgem em meados do fim da produção de um game. Deliberadamente são trazidas pelos designers de jogos, ou gamedesigners, responsáveis por todo o setor de criação de personagens, roteiro, cenários, onde boa parte da mágica ao que se definem os videogames, nos olhos de quem consome a mídia, é formada.
Mas como em todo setor industrial privado, produzir jogos é um negócio, logo gera retorno financeiro, e obviamente, por ser uma vertente capitalista, precisa gerar esse retorno para que gastos sejam sanados, lucros gerados e novos projetos montados. Portanto muitas das decisões dentro de todas as etapas de produção estão atreladas à orçamento necessário, tempo de produção e a expectativa de lucro.
Todo o plano de iniciação do desenvolvimento de um game inclui a aquisição de kit de desenvolvimento referente às plataformas de destino dos games, marketing de divulgação, delineamento do que são os direitos autorais relativos à franquia. Também a contratação de equipe de dublagem das vozes (quando há) e até em vários casos, utilização de atores reais, onde há captação de movimentos e construção digital de seus rostos, e isso acarreta questões de direitos de imagem. Tudo isso pesa na hora de se estipular o quanto de tempo e mão-de-obra serão necessários para consolidar tudo isso em apenas um título desenvolvido. Mas como isso potencializa o crunchtime?
Usando como base o estudo na área de games, o artigo The Professional Identity of Gameworkers, escrito pelo professor de Estudos de Mídia Mark Deuze e pelo estudante graduado de telecomunicações Chase Bowen Martin, ambos da Universidade de Indiana/EUA, e também o gamedesigner Christian Allen do Instituto de Arte Online em Pittsburgh/EUA, publicado na plataforma de pesquisa jornalística em tecnologia Convergence, quando o processo de desenvolvimento está de acordo com os prazos iniciais, nada justifica o crunch e quando acontece, são situações semelhantes ao de Erin Hoffman e a EA.
Porém, quando adições são feitas de última hora, impactam imediatamente o tempo de desenvolvimento do jogo, gera mais gastos, o orçamento final já não condiz com o planejado inicialmente, diz o artigo, e onde essa situação desemboca? No setor de desenvolvimento, que inclui edição de vídeo, áudio e demais divisões ligadas à estrutura jogável, sem falar nos bugs, na maioria das vezes inevitáveis, e que, infelizmente mas certamente, fazem parte da natureza da profissão. Assim, a equipe precisa correr com o processo de produção para compensar o impacto das novas modificações e adições.
Então, seguindo com o que a pesquisa demonstrou, uma parcela de gamedevs criou ojeriza contra esses feature creeps causados pelos gamedesigners e um aparente atrito se formou entre as duas comunidades. A equipe de criação, que com toda a sua liberdade criativa, se porventura esse ímpeto lúdico repentino surge num momento aparentemente inadequado, mas independentemente disso, se o setor comercial considerar viável, é justamente nesse momento que a probabilidade aumenta da equipe desenvolvedora entrar em crunchtime.
Conclusão
Vimos que, quando formas de se trabalhar se tornam corriqueiras como o crunch, cria-se uma normalização de decisões e de concordâncias com certas situações desumanas que, para serem desestimuladas, alguém precisa tomar a frente e expor o problema. Não apenas denunciar de maneira superficial. São precisas provas, pois é assim que a sociedade funciona dentro dos preceitos legais criados por ela.
Entretanto, são por atitudes como a de Erin que podemos reunir formas de como reagir a um cenário tão engessado com explorações, despreparo dos responsáveis com processos de produção de jogos e por fim o descaso, que acaba por esconder prejuízos ao bem-estar de quem está inserido na profissão de desenvolvedor de games.