Introdução
É com um prazer muito grande que avaliamos esse belíssimo e tocante jogo brasileiro, cujo nome é tão, TÃO brasileiro. Dandara: Trials of Fear!
O título surge como um metroidvania 2D palataforma, com belíssima pixel art e uma trilha sonora que te leva numa viagem mental sobre realidades diversas e longínquas.
Guie Dandara para que ela recupere toda a existência do mundo do Sal, ao qual pertence. A opressão trazida pela Ideia Dourada despedaçou e distorceu todo o senso de prosperidade do mundo.
Cabe a ela reconstruir a harmonia de todos os seres. Portanto, busca salvar todas as entidades que são importantes para se manter o equilíbrio de todas as coisas.
O jogo foi desenvolvido pelo estúdio brasileiro Long Hat House e publicado pela Raw Fury. O jogo foi lançado em 6 de Fevereiro de 2020 simultaneamente para PC Windows/Linux/macOS, PlayStation 4, Xbox One, Nintendo Switch, Android, iOS.
Resgate do equilíbrio
O mundo do Sal é aquele onde os espíritos habitavam em constante harmonia. Criação e intenção regiam este espaço, gerando crescimento e aprendizado.

Apesar de ser uma região de paz, em um determinado momento o fenômeno da Idéia Dourada surgiu. Com isso ele invade o Sal, rompendo o balanceamento existencial, destruindo, distorcendo, dominando e aprisionando tudo e a todos. A opressão chegou.
Entretanto, quando o mundo estava à beira da destruição total, Dandara é despertada em meio à escuridão existencial, o Berço da Criação. Como se fosse a própria entidade da luz, ela está disposta a trazer seu brilho para espantar a opressão sobre todos os diversos espíritos em sofrimento.
Ela atravessará um emaranhado disforme de moradas, masmorras, selvas, ambientes tecnológicos. Além disso, sempre com o apoio presencial ou por telepatia da entidade Lazúli, uma das mantenedoras das estruturas de Sal.
Lazúli auxilia dando dicas e descrevendo inúmeras situações do que acontece ou aconteceu no mundo de Sal. Como também o que fazer para recuperar o que se perdeu no esquecimento que absorve e destrói tudo que foi criado..
Diversos inimigos de inúmeras formas estão presentes neste cenário distópico surrealista. Ainda mais, outras categorias mais poderosas de inimigos que se encontram ocultos, ou simplesmente inertes, estão presentes esperando a aproximação da protagonista. Estes, como Augustus, mantêm várias das entidades presas que precisam ser salvas para que o equilíbrio dos mundos se recupere.
À medida em que avança, a heroína reúne novas amizades que irão conferir novas habilidades e abrirão caminhos antes bloqueados para que sua busca possa continuar.
Só assim, aquela que acreditam ser a provedora da luz conseguirá iluminar e salvar o mundo de Sal das consequências da Ideia Dourada e sua opressão. Assim os espíritos oprimidos finalmente serão libertados.
Dandara, a heroína dos povos negros escravizados
Ao bater os olhos na personagem principal, nos traços faciais. nas cores de suas roupas, o símbolo brasileiro se forma de imediato. Não só pela personagem possuir traços da comunidade negra, esta que ocupa mais de 50% da população brasileira, como também o fato de estar vestida com tons amarelados e esverdeados.
Estamos em casa, nesta fantasia total brasileira. Aliás, na nossa casa que é o site Garota no Controle, temos uma entrevista com um dos desenvolvedores do jogo. Não deixem de ler!
Antes de mais nada, começando pela protagonista, pra quem estudou ou já pesquisou um pouco sobre a história do Brasil na era da escravidão, dificilmente desconhece a figura histórica de mesmo nome.
Então, a pessoa na qual o jogo se baseia se chamava Dandara dos Palmares. A propósito, o sobrenome Palmares não é coincidência, pois ela era esposa de outra figura importante para as lutas anti-escravistas do Brasil, o Zumbi dos Palmares.

De acordo com a história, ela era líder feminina negra contra a escravocracia durante as incursões referentes ao Quilombo dos Palmares. De acordo com documentos históricos oficiais, ela viveu e lutou pela liberdade dos quilombolas durante o Século XVII.
Logo, não há dúvidas das fortes inspirações da real pessoa para a protagonista do jogo. Mulher, negra, que traz a esperança da liberdade para seu povo. Derrotar os opressores de sua comunidade e dar cabo da prática da escravidão.
A IGN Brasil entrevistou os criadores, e eles destacaram as principais referências utilizadas no título.
Só para ilustrar, os produtores afirmam que não quiseram transcrever Dandara dos Palmares exatamente para uma mesma persona do jogo, e sim criar uma heroína do zero e tirar suas origens numa visão abstrata do que seria a figura histórica.
Do Brasil para o Sal
Em síntese, Os 4 integrantes da desenvolvedora são da cidade de Belo Horizonte/Minas Gerais. Por isso, citam que tiraram elementos presentes no jogo de suas vivências na cidade mineira, dentre outras características que pertencem à cultura nacional.
Logo no início do jogo, vê-se claramente placas de rua no estilo usado na cidade natal dos desenvolvedores. Decerto são semelhantes as também usadas nas demais cidades brasileiras.
Além disso, também está presente artes de rua como a do Bolinho, detentor de inúmeros fãs pela capital de Minas, criação da artista Maria Raquel.
Referência in-game da arte de rua de Maria Raquel em Belo Horizonte/MG
Outra arte famosa presente no jogo é a de Abaporu. Esta pertence à Tarsila do Amaral, artista paulista do final do século XIX e criadora do movimento artístico da Antropofagia do início do Século XX.

Falando em arte temos pixel art
Ao mesmo tempo que temos tantas referências artísticas no game, o próprio possui uma considerável carga artística pixelada. De modo retrô tão recorrente em jogos indies como esse, em Dandara: Trials of Fear sua estrutura visual é de uma qualidade, de uma profundidade única.

Com os visuais presentes nas salas em que o jogador visita, inconscientemente ele é forçado a observar a quantidade de detalhes presente. A sensação de ambiente vivo, real, é tocante em um jogo que se espera tão pouco por ser um trabalho com limitações financeiras.
Por consequência de toda essa profundidade, gera-se até um efeito pseudo-3D fascinante em diversos momentos. Frequentemente se esquece de que a arte é retrô em pixels. Sem dúvida uma obra de arte.
Sons existenciais
Logo de cara, ao surgir o menu principal, o título já lança sua lista de músicas de clima de viagem existencial/espacial. Assim sendo, percebe-se que o principal objetivo do compositor Thommaz Kauffmann é puxar quem joga para dentro do Universo do game, como na profundidade visual mencionada anteriormente.
Sons que remetem natureza, locais urbanos, espaciais, mistério de realidades longínquas, causando uma certa vertigem por se mostrarem distantes, porém tão próximas devido à distorção causada na realidade onde se passa o jogo. A pegada filosófica da trilha sonora é notável.
Músicas inspiradoras de jornada, determinação por um objetivo a se alcançar também estão presentes, mas sem perder o caráter de viagem astral.
Nas batalhas contra chefes, não poderiam faltar músicas tensas e épicas. Ao mesmo tempo, estas incentivam o jogador à buscar superação diante do obstáculo, conectando ele com a personagem via composições extremamente emocionantes.
Superação, esperança, luta: DANDARA!
Jogar desafiando a gravidade
Agora falemos de mecânicas de jogo. Seria esta uma jogabilidade tradicional em 2D plataforma metroidvania onde você corre, pula e usa dash pra alcançar plataformas mais distantes…? Não, não tem nada disso.
“Mas como?”, perguntariam.
Vamos por partes. Não é difícil perceber que por ser um jogo que cita planos material, astral, existência, espaço cósmico e conceitos de realidade, obviamente algo relacionado à gravidade estaria envolvido.
Ao saltar, ato que assemelha-se a um efeito de puxão gravitacional, a personagem seguirá na direção apontada pela linha que remete a visão da personagem, que é controlada pelo jogador num campo de 180º.
Mas o fato de poder apontar a direção para se pular não significa que conseguirá fazer, a não ser que haja um local marcado para aterrissagem.
Além disso, não importa onde esteja o local. Se na visão de Dandara ele estiver no alcance, determinado pela linha angular, é possível fazer o salto. Isso inclui o chão, o teto, paredes laterais e até plataformas em círculo que giram 360º.

Desse modo, encontra-se o primeiro ponto negativo do game. Mesmo quando o jogador se habitua com o modo de se mover, a sensação de ter a locomoção limitada não desaparece.
A falta de liberdade no movimento e de saltar livre pelas plataformas, assombra o gameplay com frequência.
Esse estilo não deixa de inovar. Dificilmente se encontra outro jogo que contenha algo que se pareça com isso. Por outro lado, ser um modo único de locomoção engessa o modo de se navegar.
Possivelmente, caso fosse uma adição ao gameplay, talvez mudasse a experiência final.
Navegando por Sal
O estilo metroidvania deste game se mostra num cenário dividido em inúmeras salas. Estas se distribuem por regiões com temas variados. Selvas, interior de casas, regiões urbanas tanto com postes de luz como placas de rua e até locais tecnológicos de eras futuras.
Ao explorá-las no início, a tarefa se mostra um pouco confusa. À medida em que o jogador avança, não importa onde aterrisse, a noção norte/sul do cenário se altera diversas vezes, sem que haja muito propósito para isso. Isso causa uma confusão inicial pois não há um mapa disponível ao iniciar o jogo.
Algumas salas à frente, em um dos inúmeros baús espalhados pelo jogo, enfim surge o mapa.
Sendo assim, o mapa é usado para registro das salas exploradas. É fácil acessá-lo tanto pelo direcional do gamepad (a análise foi feita pela versão do PC com gamepad), como por um dos botões principais. Sendo assim, agiliza o ato de interagir com o cenário, de explorar e isso também auxilia na noção para quê direção se está indo.
Ainda sobre o mapa, ao acessá-lo, ele se mostra num layout padrão norte/sul. Mas como dito antes, a noção de visão muda ao navegar, e o mapa não segue a mecânica de início.
A solução para isso foi: um dos comandos na tela do mapa tem a função de conectar a posição do mapa com a do jogador.

Contudo, ainda há algo não muito funcional. Mesmo com o mapa e sua função exploração/direção, e a facilidade de acesso a ele, o enorme número de vezes em que o jogador precisa acessar o mapa para não se perder, pelos constantes giros do cenário, gera cansaço depois de algumas horas.
Combatendo a opressão

Desde o início do jogo, Dandara possui um disparo de projéteis de luz como ataque principal. Algumas salas a seguir, um baú contem um upgrade para os disparos que aumenta a área de efeito. Vale lembrar que o ataque necessita de cerca de um segundo para carregar o próximo tiro, porém compreende-se por ser uma skill infinita.
Eventualmente, ao encontrar personagens secundários pelo mundo de Sal, estes darão à heroína novos ataques. Em contrapartida, estes irão consumir a barra de energia que logo surge abaixo da vida.
O principal ataque, por exemplo, utiliza mira ligada ao mesmo ângulo 180º utilizado nos saltos. Nos combates, a precisão dos tiros é bem detalhada. Não existe dificuldade em acertar até os menores alvos.
Os alvos podem ser tanto monstros menores dos cenários, sub-chefes e chefes maiores, como também obstáculos, tendo como exemplo paredes quebráveis, barreiras que atacam quem se aproxima, dentre outros.
Certamente haverão momentos onde ambos os comandos de salto e ataques se mostrarão como tática de luta. Desse modo, ao unir saltar para desviar de ataques inimigos e se posicionar melhor no campo de batalha com o disparos direcionados, muitas vezes mirando em pontos fracos protegidos, funciona muito bem no geral, principalmente nas lutas contra os grandes chefes.
Terminando com uma pitada de Sal
Apesar dos pesares, que surpresa boa se mostrou esse jogo, que é um saboroso suco brasileiro. Serve como um alento ver gente do próprio país criando artes como essa. Isso sem considerar que títulos como este não são baratos de se produzir, como muitos podem pensar.
Parabéns à equipe mineira da Long Hat: aos devs João Brant e Lucas Mattos, ao diretor de arte Victor L. e o compositor Thommaz Kauffmann. Mesmo com algumas ressalvas sobre o gameplay, o jogo já é um marco para a história de jogos no Brasil, gerando grande sucesso internacional.
Outra coisa é a experiência que estão acumulando e, provavelmente, veremos novos títulos futuramente.
Este título deixa um quentinho no coração, por ser um jogo que dá muito valor à cultura nacional, de diversas formas. O mundo agora está sabendo um pouco mais sobre o Brasil, e isso acontece graças à Long Hat House.