Um pouco de esperança, por mais desesperada que seja, nunca é sem valor
Imagine que você acabou de comprar Darkest Dungeon, e após assistir a cutscene inicial, um aviso aparece: “Em Darkest Dungeon você deve tirar o máximo de uma situação ruim. As missões vão fracassar e algumas devem ser abandonadas. Heróis vão morrer, e quando morrerem, continuarão mortos. O progresso é salvo constantemente, de modo que as ações são definitivas. O jogo espera muito de você. Quão longe você consegue levar suas aventuras? Quanto você está disposto a arriscar em sua busca para salvar a Aldeia? O que você vai sacrificar para salvar a vida do seu herói preferido? Felizmente, sempre há almas frescas trazidas pela carruagem, procurando aventura e fama sob a sombra da… masmorra mais escura”.
Acredito que a dificuldade do jogo esteja bem clara, entretanto, o que faz Darkest Dungeon ser, de fato, a masmorra mais escura? Primeiramente, precisamos entender sua “peculiaridade”, que serve como alma da nossa experiência aterrorizante e impiedosa.
Darkest Dungeon chegou “só no sapatinho”, e sem que ninguém percebesse, dominou o YouTube e a Twitch, formando uma legião de fãs, ainda que, por exemplo, poucos se lembrem que o jogo foi lançado em 2017; mas somente depois de um ano em acesso antecipado. Menos ainda sabem da história por trás da Red Hook Studios, fundada em 2013 por Chris Bourassa, diretor e responsável pela arte do game, e Tyler Sigman, produtor e game designer que, basicamente, nos fez apreciar a ameaça constante em Darkest Dungeon.
Ou seja, foram quatro anos de desenvolvimento? Não exatamente! Os fundadores da Red Hook se conheceram em 2003, e desde essa época, já planejavam trabalhar juntos. Dessa forma, a primeira masmorra a ser enfrentada foi a de buscar esperança para acreditar no jogo, e felizmente, eles conseguiram, dando luz a uma das obras mais influentes da década.
Semelhantemente a outros jogos independentes, Darkest Dungeon nasceu de um novo horizonte, nesse caso, o do realismo por trás de ser um aventureiro, explorar lugares perigosos e escapar da loucura mortal como parte do cotidiano. O jogador é introduzido ao game ao receber uma carta do ancestral, sendo assim convocado para ajudar na luta contra um grande mau que assola a terra. É preciso derrotar a masmorra mais escura, ao passo que se desvenda um passado mais escuro ainda.
Logo no tutorial de combate, ao controlarmos o cruzado Reynauld e o bandido Dismas, percebemos que não existem inimigos fracos em Darkest Dungeon. Leves descuidos resultam em morte, e o fator randômico do jogo (possibilidade de acertos, quantidade de dano e outros), por mais que possa ser minimizado através de estratégia e building, sempre estará lá, nos lembrando que não temos controle sobre aquilo que nossos personagens enfrentam.
“Bem-vindo ao lar, tal como és. Este vilarejo sórdido, estas terras corrompidas, são suas agora, e você está preso a elas” — Ancestral.
Nesse momento, a administração de recursos se mostra como a coluna espinhal do jogo. Somos agora os senhorios da Aldeia, e nossa missão é liberta-la da corrupção, mas… Até onde eu saiba, nobres nunca foram guerreiros que colocam suas vidas em risco. Exatamente por isso, nós, como jogadores, não morremos em Darkest Dungeon, mas arriscamos a vida de personagens que nos custam investimento. Sempre que vemos um personagem ascender, e em meio as masmorras, vemos sua queda, sentimos a culpa e a loucura que apenas os aventureiros sentem. Ou talvez o remorso de perder tempo e dinheiro…
A compaixão é uma raridade no campo de batalha febril
Para sermos bem sucedidos nas missões, investimos nossos valiosos recursos, afinal, precisamos de quatro personagens para completar uma masmorra. Porém, muitas vezes, fazemos escolhas que prejudicam nosso jogo apenas para, como dito no aviso, salvar a vida do nosso herói preferido. Darkest Dungeon não é apenas um RPG com mecânicas roguelike e administração de recursos, mas sim, sobre nos mostrar que o mais consagrado dos jogadores, aqui, é apenas gado em direção do abate.
Ao perdermos uma equipe inteira de aventureiros, sentimos tanto a fúria da derrota quanto a depressão do luto, e gostamos disso. Visitar o cemitério da Aldeia e relembrar os falecidos é, talvez, um dos métodos mais efetivos de se criar um vínculo em um jogo. O que é estranho, pois aqui os personagens não possuem voz, o design e escrita gótica de Bourassa é suficiente para nos apegarmos, demonstrando uma enorme maturidade artística.
Esqueça notas S+, lista de 100% e troféus de platina, Darkest Dungeon deixará cicatrizes em seu progresso, e a melhor forma de aproveitar a experiência é aceitando-as. Segundo o escritor Henry Miller, a forma com que alguém se orienta depende do fracasso ou do sucesso próprio. E apenas através dos dois, podemos completar esse jogo.
Eis que o abismo se manifesta

Diversas mecânicas não serão citadas nesse artigo, afinal, Darkest Dungeon é simplesmente complexo em sua inovação. A soma disso pode ser associada ao subgênero conhecido como horror cósmico. Mas, o que, necessariamente, representa o horror cósmico? Tentáculos? Acho difícil, pois todos os títulos dessa família literária inaugurada por H.P Lovecraft possuem uma coisa em comum. Sendo ela a inegável análise psicopatológica do ser humano, normalmente de maneira negativa, assim como a estética não natural, “extra planar”.
Em Darkest Dungeon, além do contador de vida, possuímos também o contador de estresse, que ao se encher pela metade, gera um teste de resiliência para o afetado, podendo esse tornar-se aflito ou virtuoso. Caso o contador continue a subir, atingindo o máximo, o herói sofre um ataque cardíaco, zerando sua saúde. Um exemplo de aflição seria o estado egoísta, enquanto um exemplo de virtude seria o estado corajoso. Ambos geram efeitos no combate e são um método efetivo de se pensar o jogo.
A voz de Wayne June, o ancestral narrador, ao lado dos textos de Bourassa e das mecânicas de Sigman, criam uma imagem sincera de como a humanidade, em tempos sombrios, usa da loucura como ferramenta em nome da sobrevivência. Você acha que os títulos do texto foram invenção minha? Fico lisonjeado! Mas, na verdade, são falas que ouvimos durante a jogatina, marteladas em nossas cabeças o tempo todo.
Muito bom o texto.