A empatia guia Nier.
Poucos jogos fazem da empatia – o ato de se identificar e (tentar) entender o próximo – algo tão central como Nier faz. Sobre o que trata a franquia e suas peculiaridades, já abordamos aqui e aqui. Agora, vamos tentar entender. Entender um pouco mais sobre o “outro” e, quem sabe, sobre nós mesmos.
Empatia na vida real é algo complicado e delicado. A menos que você seja uma inteligência artificial lendo diversos textos para aumentar a capacidade de realizar determinada tarefa (caso seja, 01101111 01101001), você entende o que quero dizer. Já ocorreu de não te entenderem e de você não entender alguém.
Agora, nos jogos, a situação é ainda mais “crítica”. Não é que todo e qualquer jogo deve demonstrar que o adversário recém derrotado tinha marido e filhos, porém a estrutura dos jogos tende a ser um obstáculo para a empatia.
Não é algo muito difícil de se ver, a generalização e despersonalização do “outro” em obras – principalmente nas voltadas para conflitos – é algo que ocorre desde o primeiro Contra (1987) e continuará ocorrendo até o último Call of Duty (franquia essa que irá durar mais do que todos nós).
Porém, Nier não é assim. A temática da empatia permeia todos os aspectos de sua construção, incluindo sua progressão, jogabilidade e música. A ideia de compreender aqueles que cercam você, assim como se entender, define a franquia e os jogos que a compõe.
Não podemos, contudo, ignorar os erros e equívocos cometidos pela saga, os quais já não possuem desculpa para estar em qualquer que seja a obra, principalmente em uma que possui a compreensão como um tema tão forte.
Uma recompensa dada pela realização de uma atitude transfóbica tem tanto lugar em Nier Replicant como uma piada homofóbica tem em She-Ra e as princesas do Poder.
Os pontos negativos serão devidamente abordados mais adiante pois, assim como seria antiético ignorá-los, seria igualmente incorreto deixar de lado os diversos aspectos que as obras da franquia Nier fazem muito bem.

A linguagem da empatia.
Palavras são coisas interessantes. Elas têm a ingrata e árdua tarefa de externalizar o que ocorre dentro de nós. Nossas ideias, crenças e opiniões, as quais fazem sentido (ou não) para nós enquanto estão em nossas respectivas mentes, porém podem se tornar incompreensíveis quando partilhadas com o próximo.
(por “palavras”, favor entender qualquer forma de se expressar, seja por fala, escrita ou gestos)
E se já é complicado entender o outro (e a si mesmo) no espaço da mesma língua, o que ocorre quando nos deparamos com outra língua? Si je commencer à écrire comme ça, or even like this, seriamos capazes de compreender um ao outro?
Essa temática de uma barreira linguística e/ou ideológica impedir o entendimento entre pessoas é algo presente na franquia. Principalmente em seu primeiro jogo.
Após finalizar Nier – e Nier Replicant – pela primeira vez, a pessoa que está jogando ganha dois poderes os quais superam qualquer armamento ou habilidade arcana que possa ser oferecida.
Ela ganha o dom do contexto e da compreensão.
Assim, Eventos são estendidos e barreiras linguísticas caem por terra. Coisas e pessoas, antes consideradas simples e superficiais, ganham maior importância e significado. Aqueles que antes eram personagens secundários mostram ser capazes de amar, compreender e, também, sofrer.
É uma técnica narrativa extremamente poderosa. Nier consegue estender sua trama não só criando conteúdo, mas, principalmente, recontextualizando o já existente. Você consegue se desprender do personagem principal e passa a ver o mundo como um todo.
Os seres que nele habitam revelam ser, cada um, os personagens de suas próprias tramas. E assim, a narrativa se torna algo maior, algo mais profundo… Algo que incentiva, bem, a empatia.

A música da empatia.
Se Nier não tivesse a trilha sonora que tem, seria uma obra menor. Não seria exagero dizer que a música presente em toda a franquia (o que inclui a saga Drakengard) é tão boa, que se torna um motivo, por si só, para jogar os jogos.
Porém, mais do que um manjar para os sentidos, as músicas utilizadas em Nier seguem um propósito. Vejam, algo peculiar no desenvolvimento delas é que, com raras exceções, elas são frutos de línguas fictícias. Quase.
O compositor Keiichi Okabe utilizou uma técnica pela qual cada música baseia-se em uma língua existente, porém modificada para soar “como seria daqui há mil anos”. Detalhe interessante: Hills of Radiant Winds é baseada em português.
Dessa forma, o resultado é uma composição melódica que, em um primeiro momento, não faz sentido, é incompreensível. Porém, e é aqui que uma das melhores qualidades da trilha sonora ocorre, assim como ocorre nos jogos, você não precisa entender para compreender.
Você não precisa traduzir as palavras de Kainé/Salvation para sentir a melancolia e esperança que a música carrega. A Weight of the World the End of YoRHa nem tinha necessidade de colocar partes em inglês e japonês, uma vez que a mensagem de superação e determinação é algo que transcende qualquer língua.
A empatia incentivada pela música consegue destruir a barreira que há entre a jogadora e personagens. Passamos a sentir seus anseios e seus desejos. A trilha sonora vira a peça fundamental para que a história, jogabilidade e arte visual misturem-se em algo singular. Tudo isso se torna Nier.

Jamais esqueça que você não é o centro do mundo.
A trama de Nier baseia-se nos atentados de 11 de setembro. Mais precisamente, nos eventos que se seguiram. A guerra de narrativas e justificativas em prol de colocar determinado grupo como moralmente correto e outro moralmente errado.
Assim sendo, esse desejo de desumanizar o outro e colocá-lo como algo totalmente antagonista é algo que os jogos abordam e questionam. As certezas absolutas, quase sempre, revelam-se como erros e caminhos garantidos para o fracasso coletivo.
A única resposta – a única jornada viável – é a empatia.
Por isso que deixa um gosto azedo quando o jogo ignora isso. Como falamos anteriormente, nem sempre o jogo acerta. Alguns de seus erros são “menores”, mas nem por isso insignificantes.
Um exemplo de tal falha é a pequena (porém incômoda) diminuição da personagem 2B, de Nier Automata, mais precisamente com uma conquista que incentiva a jogadora a olhar embaixo da saia da protagonista e olhar o coletivo de pixels que formam seu bumbum.
Vejam bem, sexualizar-se não é um sinônimo de “se diminuir”.
Tornar-se, por conta própria, uma pessoa bela (sexy) é um excelente exercício de autoafirmação. O próprio jogo, quando não dá uma peidada na farofa, é uma demonstração disso. Com a maneira com a qual dá agência para sua protagonista e a coloca não como algo para ser possuído ou algo do gênero, mas sim como uma pessoa com seus próprios anseios e vontades.
Ademais, podemos ir até mais longe: até mesmo uma obra com um enfoque mais forte no erotismo não precisa diminuir seus protagonistas. Um dos jogos favoritos deste reles colaborador – Katawa Shoujo – é um jogo com cenas explícitas de sexo, mas em nenhum momento os personagens tornam-se meros objetos ou deixam de ser protagonistas de suas vidas, com objetivos e agência.
Agora, o que é particularmente difícil de perdoar, é quando o jogo ofende pessoas por serem quem são.
A maravilhosa personagem Kainé, de Nier (o original), tem um absurdo esmero e cuidado em sua criação. Porém, em Nier Replicant, talvez com o intuito de repetir a “espirituosa” piada de Nier Automata, o jogo resolve fazer uma brincadeira transfóbica.
Acredito que, se você está lendo esse site, não preciso ir muito longe para convencer você do quão errado isso é. Isso é uma seríssima mancha na imagem da obra. A qual não destrói o que o jogo construiu, mas assim como diminui a Kainé, diminui o jogo.
Um lado inocente e esperançoso meu gosta de pensar que foi um erro “isolado”. Similar a quando alguém faz um comentário e, apenas depois de falar, percebe que foi ofensivo e magoou o próximo.
“Ahh, George (eu), quer dizer que se o Yoko Taro (diretor do jogo) se revelar um transfóbico igual à J.K. Rowling você vai deixar de jogar os jogos dele?”
Vou, sim. São só jogos. Pessoas são mais importantes.
Pois, se tem algo que aprendi com Nier.
É que é preciso ter empatia.