A EA está mudando sua mentalidade no desenvolvimento de jogos?
Na segunda metade na última década, vimos várias polêmicas envolvendo a EA, encerramento de estúdios, praticas abusivas e anti consumidor e desenvolvimento de jogos. Porém nos últimos anos estamos vendo algumas mudanças de atitude diferentes das mencionadas. Essas mudanças me fizeram refletir sobre o que a EA está planejando para seu futuro e me fez chegar a pergunta que deu origem a esse artigo. Será que a EA está mudando sua mentalidade no desenvolvimento de jogos?
Para entender todos os problemas, críticas e desastres em vendas que a Eletronic Arts teve nessa última década, precisamos revisitar o passado da empresa, onde a EA era uma das melhores desenvolvedoras, ou talvez a favorita de muita gente, com franquias famosas e que todos jogavam.
Um passado glorioso
A Eletronic Arts foi fundada nos Estados Unidos em 1984 por William Murray Hawkins III e se sustentou a partir de três pilares. O primeiro é tratar os talentos criativos como artistas. O segundo é desenvolvimento organizado, eficiente, cross-platforming, tecnologias próprias de desenvolvimento. O terceiro é obter distribuição direta com cadeias de varejistas. Certamente Willam Murray não tinha ideia que esse modelo de negócios criado por ele seria um sucesso e que seria copiado por várias outras produtoras e desenvolvedoras ao longo dos anos. A EA já dava seus primeiros passos com jogos de sucesso no início dos anos 80, mas o sonho do criador do estúdio sempre foi jogos de esporte.
Foi assim que a Eletronic Arts fez seu primeiro jogo de basquete, chamado One on One: Dr. J. vs. Larry Bird, em parceria com os dois grandes astros do basquete da época. O recebimento por parte do público e da crítica na época foi muito bom. Então após o sucesso com o primeiro jogo de esportes, a EA lançou em 1988 um jogo de futebol americano junto ao ex-técnico e comentarista John Madden. Depois do sucesso lançando jogos de basquete e futebol americano, em 1993 a EA lançou o FIFA International Soccer, enfim se consolidando no mercado de games.
Esse modelo de negócios foi copiado na Indústria dos games e foi um sucesso durante décadas. Assim, várias franquias de sucesso da EA surgiram, como The Sims, Medal of Honor, Battlefield, Need For Speed, Dead Space, Mass Effect e Dragon Age. A ambição da Eletronic Arts sempre foi evidente e sinônimo de sucesso. Porém a partir da década de 2010 passou a ser um pesadelo para a empresa em vários quesitos
Polêmicas envolvendo loot boxes
As polêmicas começaram em 2017 com os lançamentos de Star Wars: Battlefront 2, Mass Effect: Andromeda e FIFA 17. Em ambos os lançamentos, a EA adotou o modelo de negócios de loot boxes.
Loot boxes são microtransações feitas com dinheiro real, onde o jogador recebe caixas de itens como recompensa dentro do jogo. Basicamente existem dois tipos de loot boxes. As que dão recompensas em itens estéticos, que não concedem vantagens no gameplay para o jogador e as que concedem algum tipo de vantagem. Elas também são conhecidas como loot boxes pay-to-win, ou pague para vencer.
Como a EA utilizou as loot boxes nos seus jogos
A EA utilizou o modelo pay-to-win nos seus três maiores jogos lançados em 2017. No FIFA 17, comprovou-se que no modo de jogo Ultimate Team, onde o jogador compra cartas de jogadores para montar seu elenco, quem comprava as cartas com dinheiro real, tinha mais chances de receber jogadores de nível maior do que quem não comprava as cartas. Igualmente como aconteceu com Mass Effect: Andromeda e Star Wars: Battlefront 2. Onde as loot boxes pagas com dinheiro real dava aos jogadores itens melhores e personagens mais raros.
O Star Wars: Battlefront 2 foi o que mais recebeu críticas. Este sofreu boicote dos fãs, não atingindo a marca de 10 milhões de cópias vendidas esperada no primeiro ano. Em meio as críticas, a EA retirou as loot boxes. Mas após o baixo número de vendas e com as receitas da empresa caindo, o estúdio adicionou novamente as loot boxes nos jogos.
A polêmica foi ainda maior quando a Disney, detentora dos direitos da marca Star Wars, ordenou a retirada das loot boxes, ameaçando cancelar a parceria com a EA devidas as críticas que estava sofrendo, mesmo sem envolvimento com o desenvolvimento do jogo.
As polêmicas não foram apenas com os consumidores, o governo da Bélgica entrou com um processo contra a EA envolvendo as loot boxes e modelo de negócios pay-to-win. Contudo, essa polêmica gerou uma grande debate envolvendo toda a indústria e o tema passou a ser discutido com maior frequência.
Encerramento de estúdios após fracassos
Outro fator negativo que gerou polêmica e fez com que a popularidade e a qualidade dos jogos da EA caíssem foi o encerramento de alguns de seus estúdios. Os cancelamentos vieram após vários lançamentos fracassaram tanto em vendas quanto em crítica, mesmo em alguns casos, a EA não dando nenhuma justificativa sobre o encerramento dos estúdios.
Dentro estúdios famosos cancelados temos a BioWare Montréal. O estúdio servia como apoio no desenvolvimento de Mass Effect 2 e 3 foi a responsável pelo desenvolvimento de Mass Effect: Andromeda. A EA encerrou o estúdio ainda em 2017, após o fracasso de vendas e em críticas do jogo. A EA também cancelou também a Criterion Games, responsável por Black, Burnout Takedown, Need For Speed Rivals e Hot Porsuit, e criou a Criterion Software, mas sem maiores justificativas. A Visceral, talvez tenha sido o maior estúdio da EA encerrado. Eles foram responsáveis pelo desenvolvimento da trilogia Dead Space, Battlefield Hardline e The Godfather. A Eletronic Arts cancelou o estúdio após o fracasso de Dead Space 3.
O encerramento dos estúdios foi um retrocesso para a EA, ela esqueceu de algumas franquias famosas, que é um caso de Dead Space e franquias como Need For Speed tiveram seus desenvolvimentos repassados para outros estúdios, porém nenhum dos jogos foram tão bem recebidos quanto os jogos clássicos da franquia.
O ponto de mudança
Após todas as críticas e polêmicas envolvendo a EA, o estúdio começou a mostrar que ouviu seus fãs. Em 2018, criou um selo de jogos chamado EA Originals. Surpreendentemente, esse selo criado pela Eletronic Arts faz com que o estúdio seja uma incubadora e publicadora de jogos feitos por desenvolvedores independentes. Mas esse projeto começou de uma forma discreta, quando a EA publicou Unravel, desenvolvido pela sueca Coldwood Interactive, ainda em 2016. A partir daí a EA começou a ter uma visão diferente para jogos independentes, até criar oficialmente o selo EA Originals em 2018.
Desde então, jogos como Sea of Solitude, Unravel Two, A Way Out e os mais recentes It Takes Two e Lost in Random, esse que será lançado no dia 10 de setembro desse ano, obtiveram esse selo. Certamente essa estratégia é uma característica aos anos clássicos da EA, nesse caso ela serve como parceira dos estúdios independentes e não recebe nenhum tipo de lucro nas vendas dos jogos, o único retorno financeiro é o investido em marketing na publicação dos games.
Além de servir como incubadora de jogos indies, a EA passou a ser mais pé no chão com alguns de seus lançamentos. Em 2019 a empresa lançou Star Wars: Jedi Fallen Order e o battle royale Apex Legends, ambos desenvolvidos pela Respawn. Os jogos fizeram muito barulho, mas dessa vez positivamente. Jedi Fallen Order agradou a crítica e vendeu mais de 10 milhões de cópias. Apex Legends ultrapassou a marca de 290 mil jogadores.
A importância da Respawn
Uma série de fatores fizeram com que ambos os jogos serem um sucesso. Primeiramente, a Respawn desenvolveu ambos os jogos, o estúdio é um dos melhores e mais experientes estúdios da EA atualmente e vem do sucesso de Titanfall 2, lançado em 2016. Star Wars: Jedi Fallen Order não tem loot boxes nos moldes pay-to-win e foca em uma experiência single player, totalmente o contrário do que foi feito com Star Wars: Battlefront 2.
Já Apex Legends, se passa no mesmo mundo de Titanfall , então a Respawn pegou todas as características de sucesso do jogo de origem e trouxe para o battle royale. O jogo é um FPS (tiro em primeira pessoa) com gameplay fluido e frenético. Além disso, cada personagem tem habilidades específicas, tudo isso feito bem balanceada pelo estúdio. Fatores esses que aumentam o fator replay do jogo.
A EA já deixou bem claro que aprendeu com os erros do passado, apesar de usar loot boxes em outros jogos , como FIFA, por exemplo. Porém agora o estúdio tenta deixar mais claro a maneira que as loot boxes são trazidas para seus jogos. Isso não faz com que a EA deixe de ser criticadas por continuar a adotar esse modelo de negócios, porém as críticas são bem menores do que as recebidas anos atrás.
Os atuais estúdios e seus trabalhos
Certamente a EA sentiu na pele as criticas recebidas e percebeu o que precisaria ser feito para ter um futuro menos conturbado. Parte dessa mudança parte em dar uma maior liberdade para seus estúdios trabalharem, visto que ela tem estúdios com tradição na indústria.
A Respawn tem uma equipe que trabalha constantemente no Apex Legends, mas certamente tem uma equipe trabalhando numa sequência de Star Wars: Jedi Fallen Order. A EA Motive revelou recentemente que está trabalhando num remake de Dead Space. O projeto parece estar nos estágios iniciais de desenvolvimento, mas muitas novidades sobre o game já foram reveladas.
A divisão de esportes continua trabalhando nas franquias FIFA e Madden, lançando jogos anualmente. Portanto acredito que a EA não tem planos para mudar os rumos dessa divisão de esportes. É aqui onde as microtransações reinam e fazem a EA bater recorde de lucros ano após ano. O estúdio Dice é responsável pelos jogos de tiro da Eletronic Arts. Atualmente eles estão trabalhando no Battlefield 2042, que será lançado em 22 de outubro desse ano.
A Criterion Software é o estúdio responsável pelos jogos de corrida e estava trabalhando em um novo Need For Speed. Porém esse novo jogo foi adiado para 2022 para que a Criterion possa ajudar no desenvolvimento de Battlefield 2042. A Criterion precisa fazer um Need For Speed muito melhor do que os últimos lançados. Afinal, agora a Eletronic Arts adquiriu o estúdio Codemasters, estúdio referência em jogos de corrida.
A Codemasters lançou em novembro de 2020 DiRT 5 e em julho de 2021 lançou F1 2021. A Codemasters certamente serve como sombra para a Criterion no quesito jogos de corrida. Provavelmente a EA irá repassar a franquia Need For Speed para a Codemasters caso o próximo jogo da Criterion não alcance o sucesso desejado.
Uma Segunda chance para a BioWare?
Atualmente a BioWare é uma grande incógnita para a EA. No passado o estúdio era sinônimo de bons jogos, mas que na última década, vive altos e baixos. Em 2012 a BioWare lançou Mass Effect 3, este foi de longe o pior da trilogia mas ainda teve boas críticas da mídia especializada. Em 2014 a BioWare lançou Dragon Age: Inquisition, que foi vencedor do The Game Awards como jogo do ano.
Tudo parecia bem, até que Mass Effect: Andromeda foi lançado em 2017. Este teve muitos problemas no lançamento, desde desempenho até as microtransações. No agregador de notas Metacritic, tanto mídia quanto jogadores deram notas bem abaixo do que o esperado pela EA. Posteriormente, em 2019, o desastre foi maior, com o lançamento de Anthem. A promessa de ótimos gráficos, história e mecânicas de gameplay inovadoras para a época. Mas isso foi só na teoria. Na prática, o jogo sofria com bugs e constantes erros de conexão. Além disso, tinha pouco conteúdo e as poucas missões que tinha eram repetitivas e pouco criativas.
Com isso foi um fracasso ao ponto de voltar para seu desenvolvimento meses após o lançamento para ser totalmente retrabalhado. Posteriormente, a EA relevou que Anthem ia ser relançado, agora com o nome Anthem NEXT junto com alguns conteúdos e melhorias. Porém pelo alto custo do projeto, a Eletronic Arts cancelou Anthem, colocando em risco a existência da BioWare.
O estúdio não foi cancelado e a BioWare recebeu uma nova chance, agora ela está trabalhando em um novo Mass Effect e em um novo Dragon Age. Pouco se sabe sobre os projetos, mas a expectativa é que o estúdio volte aos seus anos de glória. Afinal, eles possuem grande experiência em RPG e já passaram por altos e baixos com essas franquias.
A EA ainda erra e erra feio
Mesmo a EA mostrando sinais que está mudando sua mentalidade no desenvolvimento de seus jogos, ela ainda comete muitos erros. A empresa ainda sofre duras criticas pela forma que utiliza as microtransações e na pouca inovação nas suas franquias de esporte, principalmente com FIFA. Ano após ano o jogo de futebol lançado pela EA fica mais caro e com menos inovações, algo que não faz mais tanto sentido para a indústria nem para os jogadores. Enquanto sua maior concorrente , a Konami adotou um novo modelo de negócios com o E-Football PES, vendendo bem mais barato, apenas com a atualização dos elencos. A partir de 2022, a Konami o E-Football passará a ser gratuito e com modos adicionais pagos a parte.
Outra franquia que sofre críticas constantes é The Sims. Em 2019, a IGN Brasil postou uma matéria com um levantamento de todas as Dlc’s e conteúdos adicionais disponíveis, que somados, custariam mais de R$2.000,00 e expansões com pouco conteúdo custando R$ 150,00. Após esse levantamento a EA chegou a reduzir o preço dessas expansões, mas práticas como essas usadas tanto em FIFA quando em The Sims ainda são normais na empresa. Mesmo com todas essas críticas, os jogos vendem bem todos os anos e a EA não tem intenção de mudar isso.
O que esperar do futuro
Acredito que ainda seja sedo para afirmar que a EA mudou sua mentalidade no desenvolvimento de jogos. Eles ainda utilizam as loot boxes, como FIFA e Madden e não escondem. Muito pelo contrário, eles continuam utilizando essa estratégia. Agora pelo menos as coisas são um pouco mais claras para os jogadores e deixam claro que não utilizam mais o modelo de negócios pay-to-win. Muito se fala dessa mentalidade da EA, mas talvez sem ela os jogos com selo da EA Originals não iriam existir. Dessa forma não veríamos: Knockout City, It Takes Two e A Way Out. É correto de afirmar é que a EA deu o primeiro passo e algumas melhorias já são vistas. E para isso acontecer foi essencial o barulho que a mídia e o público fez.