Você já conhece essa história. O filme possui uma única personagem feminina. Ela é forte, mas sempre corre perigo. Bruta, mas de um jeito sensual. E, principalmente, ela só tem amigos homens. É tão batido que tenho certeza que você pensou em, no mínimo, uns três filmes com essa mesma personagem.
Não me leve a mal, a maioria deles são incríveis. Porém, são produtos do seu tempo. E, assim como Stranger Things é um produto moldado na nostalgia dos anos 1980, não teve como ela se livrar desse estereótipo.
Felizmente, a representação feminina da série melhorou bastante ao longo das temporadas. Neste segundo artigo sobre a série, é hora de dissecar as personagens femininas que vivem em Hawkins, Indiana. Para ler minha análise da primeira parte, clique aqui!
Aviso: esse artigo contém spoilers de todas as temporadas de Stranger Things!
A Estranha na Rua Maple
À primeira vista, Stranger Things 1 é impecável em quase todos os aspectos. Ela entrega mistério, personagens cativantes, ambientação maravilhosa e um gancho para a temporada seguinte. É tudo muito bonito e tão bem feito que você se sente naquela cidadezinha no interior dos Estados Unidos, no ano de 1983.
No entanto, ao rever a temporada, é possível perceber alguns problemas na construção de personagens. Por exemplo, as mulheres são as que mais sofrem. Podemos contar nos dedos quantas personagens femininas a primeira temporada possui, e isso nem é uma hipérbole.
Joyce Byers é a mãe preocupada e neurótica. Em contrapartida, a outra mãe da série, Karen Wheeler, é a típica mãe frustrada com sua vida de dona de casa.
Nancy Wheeler, da mesma forma, se encaixa no estereótipo de adolescente mimada. É apaixonada pelo garoto mais popular da escola, e tem uma melhor amiga, Barb. A amizade entre Nancy e Barb é, inclusive, a única entre mulheres na temporada. Contudo, a relação nem sequer passa no Teste Bechdel, uma vez que elas sempre conversam sobre Steve.
A outra personagem feminina é a mais importante da série. Eleven é uma menina com poderes que foge do Laboratório Hawkins. Mike, Dustin e Lucas a encontram na floresta e, bem, o resto é história. Apesar de ser uma garota forte e corajosa, Eleven não tem contato com nenhuma outra mulher, a não ser Joyce.
Sarah Connor, Ellen Ripley e Leia Organa têm algo em comum com Eleven. Todas elas estão rodeadas de homens, e suas personalidades são moldadas por eles. Eleven cai no estereótipo de que ela, sozinha, é “mulher suficiente” para lidar com o resto do mundo.
MADMAX
O Teste Bechdel, citado acima, é feito para determinar se algum filme ou série fornece boa representação feminina. É preciso passar por três fases: deve ter no mínimo duas mulheres, devem conversar entre si, e sobre coisas além de homens.
É um teste incrivelmente bobo quando colocado assim, mas, acredite, muitas séries e filmes não passam nem da primeira fase. Stranger Things, por exemplo, nas duas primeiras temporadas, mal chega ao segundo nível.
Algo que, inclusive, me incomodou bastante no segundo ano da série foi a introdução da personagem Max Mayfield. Ela é uma garota independente, com um meio-irmão péssimo, e que só quer se enturmar. Até aí, tudo bem. Porém, ela é diretamente rivalizada com Eleven a temporada inteira. Aparentemente, há espaço para apenas uma menina no grupinho de Mike e companhia.
Enquanto Lucas e Dustin tentam ser mais que amigos de Max, Mike a ignora e a deixa de lado. Ela está sempre na sombra de Eleven, é constantemente comparada com ela e não tem espaço para se desenvolver dentro do grupo.
Mantidas longe uma da outra pela temporada inteira, o esperado encontro entre Eleven e Max é cheio de faíscas. De um lado, Eleven sente ciúmes por Max ter entrado na vida dos garotos que ela considera família. Do outro, Max finalmente se vê frente a frente com a garota de quem todos falam. Porém, elas mal conversam, e isso nem deve ser considerado um encontro de verdade.
Felizmente, a terceira temporada mudou muito a forma como os irmãos Duffer escrevem mulheres. Mas, ainda temos outras relações femininas que devem ser discutidas antes.
Por favor, deixem Will Byers ser gay!
A Irmã Perdida
O episódio 8 da segunda temporada de Stranger Things é, provavelmente, o mais polêmico da série. Distante do pandemônio que Hawkins se tornou, a série se volta para Eleven e sua relação com seus poderes e o Doutor Brenner. Juntamente a Kali, a Eight do Laboratório Hawkins, ela se entende como pessoa e percebe o lugar onde ela deveria estar.
Apesar de ser um episódio totalmente focado em duas personagens femininas, até ele não passa com glórias no Teste Bechdel. São duas meninas abandonadas por suas famílias, com poderes além do entendimento humano, e prontas para a ação. E, ainda assim, homens dominam suas conversas.
Elas são obcecadas por Brenner e, naturalmente, seus papos são sobre ele e o Laboratório Hawkins. Afinal, o objetivo de Kali é matar todos que a torturaram quando criança. E, adivinhem só, a maioria deles são homens.
Eu acredito que esse é um excelente episódio de desenvolvimento de personagem. Respiramos fundo antes do confronto final e isso é ótimo. Por outro lado, o episódio só demonstra a fraqueza dos roteiristas em lidarem com mulheres fortemente independentes.
Está me Ouvindo, Suzy?
A terceira temporada de Stranger Things expandiu tudo o que já era conhecido da série. E isso não poderia ser mais diferente quando o assunto são personagens femininas. Em primeiro lugar, Erica Sinclair e Robin Buckley são grandes adições à série.
Cada uma possui um jeito único de lidar com as pessoas e as situações ao seu redor. Só de as duas estarem no mesmo núcleo de personagens, conversando entre si sobre como escapar de uma prisão russa, já é um feito impressionante.
O melhor, contudo, veio com a amizade entre Max e Eleven. Apesar de sua relação surgir enquanto falavam de homens, Max diz muito bem: “Tem muito mais na vida do que namorados”. Durante toda a temporada, Max protege e cuida de Eleven enquanto Mike surta com a possibilidade de enfrentar Hopper para namorar a garota.
O que antes era apenas uma inimizade forçada pelos ciúmes insensatos de Eleven, se transforma em uma amizade necessária para toda a série. Ao colocar suas duas personagens da mesma idade para agirem como adolescentes “normais”, Stranger Things finalmente quebra a ideia da Personagem Feminina Única, que vemos nos filmes citados acima.
Agora, a série deixa de lado a nostalgia para finalmente entrar na segunda década do século XXI.
O Monstro e a Super-heroína
E, por fim, chegamos à quarta temporada. Desta vez, a amizade de Max e Eleven ficou de lado para aprofundar a relação entre Robin e Nancy. Ao colocarmos assim, parece que não pode existir duas amizades femininas ao mesmo tempo na série, mas a ideia é totalmente oposta.
Eleven teve de se mudar para a Califórnia. Porém, a influência de Joyce nela é palpável, tanto em suas roupas como em seu comportamento. Do mesmo modo, é muito bonito ver a importância que Joyce Byers tem em sua vida.
Para uma garota criada em laboratório toda a vida, com apenas figuras paternas ao seu lado (uma exclusivamente abusiva), finalmente ter uma mulher corajosa e brilhante como Joyce ao seu lado, é bastante representativo.
Além disso, algo importante de se ressaltar é o quão crucial cada personagem feminina é para a temporada. Se não fosse o sacrifício de Max, Vecna não seria parcialmente vencido. E, juntamente com Eleven, ela não teria conseguido esse feito. Enquanto isso, não fossem por Robin, Nancy e Erica, nenhuma das duas conseguiriam chegar à mente do vilão.
Simultaneamente, se não fosse por Suzy, os garotos da Califórnia nunca teriam chegado ao local onde mantinham Eleven. E, definitivamente, Hopper não sairia da Rússia se não fosse por Joyce.
Para quem ficou obcecado por Eddie ou Steve, eu sinto muito. Foi uma temporada das mulheres e delas apenas. Em suma, elas estão aqui para ficar.