Introdução
Agora nesta segunda parte da série (a primeira neste link) falamos da dona dos direitos de uma das franquias que marcaram a história dos videogames, a Rockstar Games, desenvolvedora e distribuidora da franquia Grand Theft Auto (Comumente conhecida como GTA) onde só sua quinta versão, em 2018, atingiu a casa de $6 bilhões em vendas.
Desde a década de 90, GTA segue até hoje influenciando diversas outras produções. A empresa também ganhou fama em 2010 com o primeiro título de Red Dead Redemption.
Mas como já vimos na primeira parte desta série, o que parece uma jornada formidável para uma publisher com tão aparente sucesso, novamente aparecem relatos de trabalho excessivo, atrasos no pagamento por horas trabalhadas e até mesmo falta de compensação por tempo extra.
O crunchtime ao passar dos anos
Em 2006, a Rockstar Games já era uma empresa multibilionária, com seus jogos mundialmente populares. Mas o que causa intriga é o que leva uma distribuidora deste porte ser alvo de tantas críticas trabalhistas? Crise financeira não seria uma boa desculpa, levando em conta seus ganhos anuais.
Neste ano, Rockstar foi obrigada a compensar financeiramente um montante, cerca de 2,75 milhões de dólares referente a tempo de trabalho não acertado para ex-funcionários, no caso conhecido como: “Garrett Flynn, et al. v. Angel Studios, Inc./Rockstar Games et al”.
GTA San Andreas lançado em 2004, dois anos antes da primeira denúncia feita por desenvolvedores contra a Rockstar. Imagem:Fonte: https://glo.bo/3n9KHTX
Mas onde estão exatamente os casos de crunch? Entendemos na primeira parte que as chances de qualquer empresa realizar a prática parece mais endêmica do que aparenta, entretanto só podemos relatar casos quando são oficialmente notificados. E esta série de artigos tenta se ater a isso. E sim amigos gamers, temos crunch logo a seguir.
Em 2010, ano de lançamento de Red Dead Redemption, incrivelmente semelhante como no caso de Erin Hoffman, com a diferença de que desta vez não só uma, mas um grupo de esposas de funcionários da Rockstar divulgou uma carta entitulada: “Esposas de funcionários da Rockstar San Diego se reorganizaram”.
Elas denunciam casos de não pagamento devido, maridos estressados, exaustos, sem tempo de convívio mínimo com sua família, e uns chegando ao ponto de desenvolver ideação suicida.
Outras produções problemáticas foram L.A. Noir de 2011, e Max Payne 3 de 2012. Essa edição de Max Payne teve um processo de desenvolvimento conhecido como a “marcha mortal”, com jornadas noturnas constantes e crunch frequente.
Ainda assim, os acontecimentos anteriores parecem não ter sido o pior já mostrado pelo estúdio. O estigma visivelmente se agrava ao levarmos em conta os oito anos de produção de Red Dead Redemption 2, lançado em 2018.
Os irmãos Houser e RDR 2
Em uma investigação realizada pelo jornalista ex-Kotaku (hoje na Bloomberg) Jason Schreier (Twitter: @jasonschreier), para o seu veículo na época, no ano de lançamento de RDR2, ele faz todo um levantamento de entrevistas feitas com funcionários da Rockstar Games, ex-funcionários e profissionais do ramo de outros estúdios conhecidos que conseguiu contatar.
Schreier registra diversos depoimentos, parte deles feitos no anonimato, onde toda a prática denunciada de crunch durante o desenvolvimento gira em torno dos dois principais mandatários da distribuidora, os irmãos Dan e Sam Houser.
Eles, que além de co-fundadores da empresa também foram líderes criativos do jogo, são figuras carimbadas no que diz respeito a feature creep já mencionado anteriormente nesta série de artigos.
Toda a equipe de gamedevs, com um razoável tempo de casa, é calejada com as frequentes mudanças realizadas por eles (os Housers), em diversos elementos dos jogos que estão em etapas avançadas de desenvolvimento, e o crunchtime já é esperado.
Red Dead Redemption 2. Mais um dos grandes games de sucesso da Rockstar, mas também detentor de um dos processos de produção mais polêmicos da indústria. Imagem:Fonte:https://bit.ly/3pGgkGu
O ápice da polêmica de excessivo crunch durante a produção de RDR2, foi quando Dan Houser divulgou “estar trabalhando 100 horas semanais” para acelerar o término dos ajustes finais para enfim lançar o game.
Com tentativas fracassadas de mudar o cerne de seu comentário, o impacto já havia sido causado, e questionamentos começaram a ser feitos por toda a empresa, a própria indústria e por toda comunidade gamer.
Dos questionamentos feitos, alguns foram algo como “será que todo game dessa estirpe, para que possa alcançar o sucesso de vendas e satisfação dos gamers, o crunch excessivo é inevitável?” ou “a Rockstar pratica crunch com seus desenvolvedores em todo jogo?”.
Segundo alguns desenvolvedores, eles não souberam de jornadas de trabalho de 100 horas por semana por ninguém de nenhuma equipe, mas que presenciaram e até passaram por períodos entre 70 e 80 horas semanais.
Por todo o decorrer do trabalho realizado por Jason, ele conseguiu contatar um total de 34 empregados na época e 43 que já se encontravam fora da empresa. Uma parcela se dizia satisfeita sem sofrer com o crunch, outras muito incomodadas com esse ambiente. Em adição houveram aqueles que apesar do crunch, eram felizes em trabalhar na empresa e especificamente terem feito parte da produção de RDR2.
O jornalista foi além. Por já ser conhecido pelo seu trabalho neste caso por um tempo, a empresa se viu forçada a se retratar e a estimular que seus funcionários relatassem problemas, tipo de coisa que não acontecia antes.
Consequentemente, houve uma convocação do estúdio para que Schreier fizesse uma entrevista direta com os empregados. Porém, com a presença de um dos líderes da companhia durante a conversa e os diálogos sendo feitos num modo à distância por videoconferência, o jornalista se referiu como “a entrevista mais estranha que já realizou”.
Sendo assim gerou-se a desconfiança sobre haver total tranquilidade dos profissionais em se pronunciar sobre os abusos que sofriam. Durante todo o caso representantes da distribuidora, como a líder executiva Jennifer Kolbe, tentaram amenizar os relatos de crunch quando eram indagados pela mídia, mas no fim, mesmo se utilizando de palavras contidas e de maneira reservada, a empresa assumiu que cometeu excessos.
Conclusão
Nessa segunda etapa da série, ficou claro que existe uma tendência em relação aos crunchtimes. As circunstâncias ao qual os profissionais de desenvolvimento se encontram à mercê de mandos e desmandos desordenados dos mandatários, sem questionar e nem possuindo qualquer tipo de organização oficial de luta por direitos, propicia a manutenção das condições rígidas de trabalho.
Por outro lado, de alguma forma já existe um crescente aumento de profissionais do jornalismo empenhados em informar, denunciar e debater o crunch, o que passa uma impressão positiva de que estes fatos não estão mais ocultos como costumavam ficar no início deste século.
São por estes motivos, como a mobilização de Schreier por investigar a fundo o que ocorria nos bastidores da Rockstar, que são tão necessários veículos informativos especializados em games, para que sejam expostos todos os fatores que geram o arcabouço comportamental dentro da indústria gamística.
Da mesma forma que existem mundos magníficos dentro dos títulos que jogamos, e o mundo gamer que os consomem, também comentam e debatem, temos o mundo do desenvolvimento na indústria onde cada profissional é uma peça que torna possível o produto final, o jogo.
Mas este mundo último se mostra doente, exausto, triste e depressivo, quando nos referimos aos desenvolvedores, que são os que em maior parte assumem os trechos de produção mais extenuantes. Esta série continuará tratando de outros pontos deste assunto que é bastante amplo, mas apesar disso precisa ser discutido.