De que forma nós jogamos?
Caso você, bela pessoa lendo este texto, desejasse assistir ao filme francês Le voyage dans la lune, de 1902, tudo o que precisa fazer é usar qualquer que seja o objeto que esteja usando para ler esse parágrafo e abrir o Youtube. Pronto, você terá acesso à obra, sem nenhuma dor de cabeça.
Agora, caso você desejasse jogar The House of the Dead, lançado 94 anos após o filme do parágrafo anterior, da maneira ideal – com uma pistola de plástico de valor inflacionado em mãos – como faria?
Bom, primeiramente, você tem bom gosto. Segundo, você teria de ter dinheiro e sorte para conseguir encontrar um console Sega Saturn, uma pistola Virtua Gun, uma televisão de tubo e, é claro, o jogo.
Um dos maiores obstáculos na preservação dos jogos é o fato de que a forma como interagimos com eles é mais importante do que ocorre nos demais tipos de arte.
Afastando questões de conforto e ignorando casos específicos, o conteúdo de um livro é apreciado sempre da mesma forma, seja impresso, em um tablet ou por meio de áudio; um episódio de Naruto será visto da mesma forma, seja em uma sala de cinema, em uma televisão no quarto ou na tela de um celular sendo assistido no banheiro.
Dito isso, tente colocar a mídia física de Extermination, o jogo favorito de qualquer pessoa que já teve um Playstation 2, em um Playstation 4 ou (até o presente momento) no 5, nada acontecerá. Você precisará do console original, controles da época e, muito provavelmente, uma televisão mais antiga.
Infelizmente, no mundo dos jogos, não abandonar o passado é algo tão caro quanto inconveniente. Os valores de mídias físicas não mais produzidas são raramente baixos e ter todos os consoles necessários é uma realidade para poucos.
Porém, seria possível, usando alguma tecnologia arcana ou conhecimentos proibidos, rodar jogos antigos em consoles atuais? Claro que sim, entra então a retrocompatibilidade, a qual não é nenhuma novidade.
O passado recordando o passado
Não é de hoje que as empresas fazem um esforço para que seus consoles rodem jogos passados, isso existe desde os tempos do Atari. Convenhamos, não é difícil ver a ligação entre um console oferecer um maior número de jogos e um consumidor ter uma maior facilidade em gastar seu dinheirinho para comprá-lo.
Usando um caso relativamente atual, temos o Playstation 3. Lançado em 17 de novembro de 2006 por absurdos 500 dólares pela versão mais básica, pode ser considerado como o primeiro caso de um grande esforço para o suporte de gerações passadas, sendo capaz de rodar jogos de Playstation 1 e 2, diretos de seus discos.
Infelizmente, não foi sem problemas. Sendo o mais notável o posterior abandono do suporte para jogos físicos de Playstation 2 nas versões futuras do console. Porém, não menos relevante, foi o fato de que, enquanto os jogos de Playstation 3 funcionavam independentemente da região do console (jogo japonês pode rodar na plataforma brasileira), esta vantagem não existe na retrocompatibilidade, tendo uma verdadeira trava de região.
Surpreendentemente, um dos maiores avanços na época no quesito preservação veio de um dos lugares mais inesperados. Veio do Wii.
Lançado apenas dois dias após o colosso da Sony, o pequeno Wii trazia suporte para jogos físicos de seu antecessor, o Gamecube, porém, trouxe algo a mais, o Virtual console.
Em sua essência, era uma loja virtual, porém focada em jogos antigos. Contudo, seu derradeiro diferencial eram as origens desses jogos, não se limitando a consoles da Nintendo. Pela primeira vez, jogadores tiveram acesso a jogos de plataformas as quais nunca viram um lançamento global, como o MSX – a casa de metal gear – e o TurboGrafx.
Mais uma vez, um grande avanço para a preservação veio com uma limitação igualmente grande: os jogos digitais comprados eram atrelados ao console e não aos usuários, sendo necessário um contato direto com a companhia para que os jogos fossem transferidos.
Em outras palavras, se seu Wii explodisse, seus jogos explodiam também.
Talvez o ponto de maior incômodo nessa história seja o fato de que essas medidas não foram mantidas com passar dos anos. No caso da Sony, o suporte aos jogos físicos de seus 3 primeiros videogames simplesmente não existe nos consoles atuais (a ausência do Playstation 3 é até compreensível, uma vez que se trata de uma plataforma consideravelmente difícil de emular)
Quanto à Nintendo, o problema está na questão de os jogos clássicos digitais não terem a garantia de funcionar em consoles diferentes. O jogo Sin & Punishment, de Nintendo 64, o qual funciona no videogame mais popular do Brasil, o Wii U, não roda no Switch.
Diante disso, existiria algum exemplo de retrocompatibilidade a ser seguido por toda a indústria?
Panzer Dragoon Orta – Um estudo de caso
A sorte não sorri para todos os jogos da mesma forma. Enquanto alguns conseguem a atenção coletiva da comunidade, seja por sua boa qualidade, fama momentânea ou por um desapontamento generalizado, outros são Panzer Dragoon Orta.
Considerado um clássico cult – o que normalmente é uma forma estilosa de dizer que algo é bom, mas não vendeu bem – a obra recebe críticas quase universalmente positivas por aqueles que a conhecem e, caso vivêssemos em um mundo ideal, poderíamos abordar pessoas na rua sobre a opinião delas de Orta e ouviríamos nada além de elogios, mas não vivemos em um mundo ideal.
Não tendo vendido bem, não é surpreendente saber que nunca saiu da plataforma que foi lançado, o Xbox original. Infelizmente, o jogo ficou reservado para aqueles dispostos a ir atrás do console e de uma (cara) versão física.
Bom, ficou reservado até 2018. Hoje, qualquer um com um console da família Xbox pode jogá-lo. Por apenas 20 reais.
A metodologia adotada pela Microsoft quanto à retrocompatibilidade é, inegavelmente, o modelo a ser seguido pela indústria, o qual não assegura apenas uma forma de jogar títulos antigos, mas a melhor forma de jogá-los.
Fazendo uso de mídia física – sem qualquer tipo de trava de região – ou digital, o jogador tem acesso a jogos de todas as gerações de consoles lançados até então, com garantia de que rodam melhor do que em sua plataforma de origem. Obviamente, há um limite do que pode ser feito sem tocar na estrutura do jogo em si, visto que quem faz todo o trabalho é o próprio console, mas os resultados falam por si só.
Problemas gráficos, de desempenho e carregamento, frutos da época e das limitações do videogame de origem, são corrigidos pelas plataformas mais atuais. Fazendo com que rodem não como de fato rodavam quando eram novos, mas da forma como lembramos que rodavam.
Isso sem falar na comodidade ofertada. Não é mais necessário caçar jogos esquecidos pelo tempo e gastar uma grande quantia para comprá-los. Sendo disponíveis digitalmente, qualquer pessoa, por um preço bem mais convidativo, pode ter acesso.
Mas como as demais formas de retrocompatibilidade apresentadas, esta também possui limitações, porém bem menos negativas. Como cada jogo é testado individualmente, o processo de introdução de novos jogos é lento.
Dito de outra forma, nem todo acervo clássico é compatível, mas aquela parte que é, funciona muito bem.
Mas, para que tudo isso?
Em novembro de 2020 foi lançado Demon’s Souls, para Playstation 5. É um Remake do jogo de mesmo nome, lançado em fevereiro de 2009, para Playstation 3.
Chegará um dia em que o Remake será tão antigo quanto o jogo original hoje é. Quando tal dia chegar, mesmo com toda a tecnologia envolvida sendo considerada ultrapassada, mesmo coletivamente apontando para a televisão e dizendo “nossa, pensar que um dia isso foi o que tinha de mais avançado”, o jogo será capaz de intrigar, inspirar e divertir.
Preservar é mais do que garantir que, no futuro, algo continue funcional, é garantir que seja acessível. O pior fim que uma música pode ter é não ser ouvida, o de um filme, não ser visto e de um jogo, não ser jogado.
Seja pela importância que é entender a evolução deste ramo das artes ou pelo simples prazer de jogar, garantir que os jogos feitos hoje e no passado sejam suportados e de fácil acesso no futuro é o meio essencial de preservar a história dos videogames.
E, vejam, ainda que ignoremos toda a relevância histórica, cultural e tecnológica que a retrocompatibilidade carrega consigo, assim, é por causa dela que podemos jogar um Panzer Dragoon Orta ou Ninja Gaiden 2 rodando lisinho em uma lindíssima resolução 4K. Então, só por isso, ela já faz a indústria dos jogos um lugar muito melhor.