Introdução
Chegamos na terceira etapa desta série que fala sobre a prática do crunch. Informamos que, por mais que esta publicação tenha informações próprias que não estão presentes nas anteriores, a equipe Garota no Controle recomenda a leitura da parte um e parte dois. Principalmente para a compreensão de alguns termos que serão usados aqui e lá estão presentes seus significados.
Ademais, aqui estão presentes outros fatos trazidos à luz por mais alguns profissionais do jornalismo gamer, trabalho este tão necessário neste momento que até mesmo em tempos de pandemia, com alguns desenvolvedores trabalhando por home office, o crunch parece uma entidade própria e se adapta independente das mudanças que a comunidade profissional de games ou as indústrias sofrem.
Com a Telltale nada é tão ruim que não possa piorar
A novela do crunch inevitavelmente reverbera para outros estúdios. Mais excessos, problemas de pagamento. É a vez de citarmos a Telltale Games quando ela executou a sua versão de crunchtime. Mas o que se mostrava mais um emaranhado de processos de desenvolvimento turbulentos, pegou de surpresa toda a indústria e a comunidade gamer em geral. Quando que, de uma hora pra outra, a empresa anuncia a demissão de um total de 275 funcionários, de todos os setores, efetivos ou temporários, ao mesmo tempo que declara falência. Outro texto da Kotaku foi usado como base, o autor sendo Ethan Gach, escritor do site (Twitter: @ethangach).
The Walking Dead foi o principal título da Telltale. Outros como Batman Telltale Series também passaram pela companhia. Imagens:Fontes: esq. – https://bit.ly/35aXbVo; dir. – https://bit.ly/2JHX9ww
Frequentemente no capitalismo, empresas nascem, empresas quebram. E no caso de quebra, o que é considerado correto é o aviso com antecedência sobre o plano de demissão em massa em casos como esse. Na lei norte-americana, 60 dias (2 meses) de antecedência é o mínimo legalmente aceito de que se anuncie a demissão, processo que vem munido de pagamentos de rescisão, compensação trabalhista pós encerramento de vínculo empregatício e manutenção de outros benefícios até a data de seu vencimento mensal, como plano de saúde, por exemplo.
Porém, nesse caso, nada disso foi feito. Todos os demitidos ficaram sem pagamento, seja o efetivo do trabalho realizado ou horas extras, isto é, nada. A Telltale usou como justificativa ausência de fundos, e simplesmente não voltou atrás com nenhuma dessas atitudes, nem mesmo após entradas com processos legais de ex-empregados exigindo seus direitos.
No momento da divulgação do desligamento e consequentemente o aparecimento de uma enxurrada de críticas, denúncias, reclamações de quem sofreu com o caso, uma grande parcela do público gamer, trabalhadores e jogadores, se mobilizou em redes sociais. Isso resultou tanto na tentativa de valorizar todo o trabalho realizado por todos os profissionais (#TelltaleMemories), fomentando um reconhecimento para toda a equipe em relação a tudo que construíram na companhia, como também um esforço para que outros estúdios se solidarizassem e procurassem oferecer propostas de trabalho (#TelltaleJobs) para os prejudicados.
Apenas para constar alguns outros casos
Durante todo esse período desde 2004 (EA) até 2018 (Rockstar), respingando em 2019 (EA “de novo?”), houveram outros casos de crunch que cabe menção (não) honrosa.
Dos recentes jogos que viraram febres, dificilmente Fortnite passou despercebido. Jogo lançado em 2017, pela Epic Games, inicialmente single player, ajudou a popularizar mundialmente o gênero Battle Royale no momento em que este modo de jogo de mesmo nome foi adicionado posteriormente. Com todo o furor do momento, vieram juntos no pacote de atualização seus problemas com crunchtime. Ben Gilbert (Twitter: @RealBenGilbert), correspondente sênior do Business Insider, publicou um resumo sobre o caso, mostrando mais relatos de horas excessivas de trabalho, cerca de 70-80 horas semanais, uns denunciando até 100h/semana. Como era de se esperar acarretando estresse, exaustão e demais distúrbios nos gamedevs.
Também na mesma reportagem de Gilbert, o “bom” (mau?) filho à casa torna. EA novamente mostrando que é expert quando o assunto são condições precárias de trabalho. Por meio de sua divisão da BioWare, conseguiu implantar 2 vezes seguidas ambientes extenuantes de crunch em ambos desenvolvimentos de Mass Effect: Andromeda (2017) e Anthem (2019). Diga-se de passagem dois grandes fracassos de lançamento em suas respectivas ocasiões.
Não haverá crunch em Cyberpunk 2077 exceto se precisar
Finalmente, o caso mais recente, ainda quente e frequentemente comentado na mídia especializada e nas redes sociais.
À princípio, a ideia que originou Cyberpunk 2077 veio do designer de jogos de tabuleiro, RPGs de mesa e videogames Mike Pondsmith, cuja trajetória data desde de 1982. Obra de mesmo nome Cyberpunk de 1988, com o sucesso através dos anos, levou a companhia CD Projekt Red (franquia Witcher) a criar seu projeto de desenvolvimento do game em meados de 2012, tendo Mike como consultor. Após o lançamento do premiado Witcher III Wild Hunt (e a expansão Blood and Wine logo após) em 2016, iniciou-se o período de desenvolvimento.
O que vale destacar nesse período de desenvolvimento do game é toda a imagem positiva que a CD Projekt Red sempre buscou manter com o usuário-fim. A comunidade fã dos títulos da CPR não economizavam elogios pela qualidade de Witcher III, apesar de no lançamento ter apresentado alguns bugs, mas os relatos demonstram que em nada isso desanimou os jogadores. Essa boa relação com os gamers é citada por um dos fundadores da empresa, Marcin Iwiński, ao passo que gostaria que sua companhia fosse vista como uma grande acolhedora de seus funcionários também. Só que a realidade não foi bem assim.
Promessas e decepções dentro e fora da CD Projekt com CP 2077. Desenvolvedores sofrendo crunch e gamers não recebendo o que esperavam. Imagem:Fonte: https://bit.ly/392KexV
Em uma reportagem do mês passado feita por Charlie Hall, repórter sênior da Polygon, é demonstrado com detalhes problemas durante a produção que atravessam anos. Mas até o fim de 2019, mais uma vez (lembremos da EA-2004) a imagem de bela empresa para se trabalhar era defendida, ao ponto das lideranças da CPR afirmarem que o crunch não será permitido. Eis que no início de 2020 é anunciado o primeiro adiamento no lançamento, mudando de Abril para Setembro/20. Feature creep? Long time no see!
E lá vamos nós de novo…
À medida que os meses avançam junto com o adiamento, a retórica de “anti-crunch” da desenvolvedora começa a sofrer mutações intensas. Na mesma reportagem, Hall expõe comentários do mesmo Iwiński junto do líder de estúdio Adam Badowski , que se resumem a “crunch não é obrigatório” e “precisamos de mais tempo para testar e polir mais o jogo”. Daí então a empresa logo em seguida divulga que períodos de crunch serão necessários, com o próprio CEO Adam Kiciński abertamente confirmando a prática.
Seis meses depois, a CD Projekt anuncia o segundo adiamento. A mudança desta vez foi do mês de Setembro para Novembro/20. A seguir, em mais um texto de Jason Schreier, em Setembro/20, na Bloomberg, é divulgado um email vazado da equipe expondo sobre expediente adicional obrigatório em fins de semana. Um dos empregados, não identificado, revelou que membros do grupo de desenvolvimento já estavam sofrendo crunchtime a mais de 1 ano. O terceiro adiamento acontece, com o lançamento jogado para 10 de Dezembro/20, que veio a ser definitivo, porém com sérias controvérsias.
Não é à toa que muitos dos jogos que passaram por processos de crunch, acabaram tendo seus lançamentos manchados com problemas de bug e crash, o que gera insatisfação com os gamers obviamente, mas nada parecido tinha acontecido em nenhum momento da história da indústria de games como ocorreu em Cyberpunk 2077. Uma série de maus funcionamentos das versões iniciais, onde quebras na execução do jogo eram frequentes, inúmeros bugs de diversos tipos, problemas de qualidade das imagens nas versões de console. E mesmo após atualizações na tentativa de consertar os problemas, incontáveis bugs ainda eram relatados. Algumas informações sobre os problemas em Cyberpunk foram disponibilizados pela editora Carli Velocci e o escritor Matt Brown, ambos do site Windows Central.
Conclusão
A jornada até aqui nos traz uma luz, mesmo que ainda muito limitada, dos elementos que fortalecem toda a formação dessa estrutura firmemente entrelaçada, e difícil de se desfazer, da cultura do crunch. Diversas denúncias foram realizadas, com um significante número de investigações feitas de notáveis profissionais do meio jornalístico gamer, que ajudaram a trazer a público más conduções de processos de produção dentro dos estúdios.
Comentários, vazamentos de emails, depoimentos em entrevistas, tudo isso feito por uma grande parcela de profissionais da área de desenvolvimento de jogos, revelando abuso de horários de expedientes, não pagamentos devidos das horas de trabalho executadas, condições precárias em ambientes de pressão psicológica com exigências extremas para que metas sejam alcançadas, curtíssimos prazos sejam cumpridos. Ambas saúdes psicológica e física ameaçadas, vida social familiar prejudicada.
Claramente a luta contra a prática do crunch foi, é e continuará sendo demorada, arrastada, tomada por obstáculos quase intransponíveis, pois o inimigo é poderoso e detentor de um capital milionário ou até bilionário, e recursos financeiros quase infindáveis garantem proteções jurídicas altamente especializadas em tratar justamente de casos como esse, protegendo grandes corporações contra profissionais da classe trabalhadora. Mas pra quem deseja conquistar um bem-estar mínimo e pleno em sua vida profissional e social, a luta apenas começou e deve continuar.