Introdução
Alcançamos a quarta e última parte desta série sobre práticas de crunch na indústria gamer. Por motivos de compreensão melhor do assunto em questão, sugerimos a leitura das partes anteriores :parte 1, parte 2 e parte 3.
Em se tratando de comunidades profissionais, é notável que para mais ou para menos sempre haverá engajamento, onde uma união simbólica é gerada entre membros do mesmo ofício ou mesma área de atuação. Isso gera identificação própria onde o profissional se conecta com o grupo ao qual pertence. Existem características comuns nesse autorreconhecimento, e no ambiente gamer isso se mostra com maior intensidade trazendo pontos positivos e negativos.
Nesse meio, com membros conectados entre si, além de engajados, reconhecidos, uma porcentagem destes também se mobilizam caso haja necessidade de que suas vozes sejam ouvidas para reivindicar algo de interesse. Nos últimos anos essas mobilizações tem evoluído e se tornado mais frequentes, à medida em que a internet se tornou mais presente e mais rápida no cotidiano de todos.
Occupational Community/OC – Johana Weststar e a comunidade profissional de games
Em grandes empresas de games, algo que tem sido corriqueiro há mais de uma década, é a promessa utópica de se “trabalhar jogando games”. Toda a promessa oferecida aos gamedevs em fazer parte de uma comunidade forte, dedicada e vencedora (ironia) surge com bandeiras da honra, heroísmo, pertencimento a família de desenvolvedores, que demonstram orgulho em se dedicar ao processo de desenvolvimento além dos horários considerados humanamente saudáveis. Ao se trabalhar com o emotivo dos profissionais, e a união hobbie + trabalho, por consequência incita a geração das chamadas OCs – Occupational Communities.
As OCs, são comunidades ocupacionais, ou em melhor sentido, comunidades profissionais com identificação própria, neste caso, do setor de games. Este cenário foi estudado pela professora de Relações Industriais e Recursos Humanos Johana Weststar, entusiasta da cultura gamer, com o artigo publicado em 2015, Understanding Video Game Developers as an Occupational Community.
Johana Weststar – Professora Associada de Relações Industriais e Recursos Humanos. Interessada no desenvolvimento de videogames, trabalhadores do conhecimento e governança de pensões (Twitter: @jweststar). Imagem: Fonte: https://bit.ly/354EaDY
No artigo, a profª Weststar cita todo o processo de construção de um intercâmbio entre os gamedevs, deveras independente do controle dos estúdios de produção de games. Segundo ela, esses grupos, sejam dos gamedevs ou de outras áreas profissionais, geram engajamento e defesa de valores identificados só por aqueles que pertencem à comunidade.
Apesar disso, ela traz à luz que mesmo as OCs sendo semelhantes independente da área de atuação, aquela que define os gamedevs caracteriza-se por diferir em reconhecer a linha que separa o que é o trabalho minimamente saudável (hora + mão-de-obra + compensação financeira), e o que é fazer parte da indústria de games, relativo a aceitar certas práticas questionáveis como o crunch numa visão de normalidade, como se a indústria não fosse existir sem o sacrifício de seus profissionais.
De acordo com as entrevistas que fez, Weststar relata uma postura divisiva entre os gamedevs. Uns reconhecem os males sociais e de saúde pessoal relacionados a esses sacrifícios em prol do desenvolvimento de jogos, porém outros defendem como pré-requisito para ingresso na área ser resiliente, aceitar as horas excessivas de trabalho pois apenas uns poucos conseguem o privilégio de se produzir games. Resume-se, quem não está disposto ao sacrifício, não está apto a pertencer à comunidade desenvolvedora de games.
Outro elemento importante mencionar do estudo da professora é o seu apelo pela necessidade de um maior número de pesquisas factuais, que estejam mais próximas da realidade dos profissionais da indústria de games, com um foco maior nos bastidores da produção dos games. Pois convenhamos, se for levado em conta o setor de marketing, por exemplo, já está muito bem representado através de inúmeros eventos, anúncios midiáticos e outras formas de propaganda onde o produto-fim ganha os holofotes, mas quem o produziu, nem tanto.
E quem sabe, com um maior número de estudos, cada vez mais profissionais relatando seu cotidiano, todo esse ambiente negativo de exploração possa ser combatido com maior efetividade, mesmo que hajam profissionais conformados ou supostamente satisfeitos com o cenário.
Comunidade gamer e o sindicalismo
Quando grupos se organizam e mobilizam para um fim que consiste em mudar sua realidade de vida, já podemos traçar uma trajetória de mobilizações desde Erin Hoffman até os anos mais recentes. Estes acontecimentos-chave estimularam a formação de grupos que buscam uma união em torno de algo próximo de um sindicato. O intuito é de estruturar atitudes de combate mais efetivos à situações de crunch,
Além do crunch, importante ressaltar são os ataques de ódio no setor gamer. Ciclos de ataques e perseguições virtuais cometidos por profissionais e da fanbase de jogos contra mulheres, povos racializados (comunidade negra, oriental, latina) e grupos LGBTQI+. Se já não bastasse a cultura do crunch, o que dirá sobre minorias que sofrem crunch e ainda por cima estes ataques pessoais? E pra piorar ainda mais assédio moral e sexual, seja no ambiente digital ou principalmente o presencial.
É chocante também saber que mesmo após tantas denúncias, como a noticiada em julho/20 pela repórter Megan Farokhmanesh (Twitter: tantos relatos de trabalhadores da indústria gamer, tantas investigações e comprovações de que existem danos morais e principalmente à saúde sendo causados em quem pertence à essa área e suas famílias, essa prática continua comum dentro dos estúdios de desenvolvimento.
Este assunto de cultura de ódio precisa de um foco próprio, mas já existe menções a isso no artigo de Deuze/Martin/Allen, e diversas outras reportagens. Então cabe deixar para um futuro próximo tratar dele com mais cuidado e dedicação. mas o comportamento odioso é feito justamente por parte da comunidade que ainda se sente dominadora, que são os homens, em sua maioria brancos, cis e heterossexuais. Décadas atrás todo o marketing gamístico era montado para os homens, crianças ou não. As meninas jogavam, mas isso não era levado em conta, e eram poucas pela maioria ser desestimulada a jogar, com a velha dicotomia patriarcal “brinquedos de meninos e de menina”.
Ainda assim existe desejo de mudança. No texto citado anteriormente nesta série, escrito por Bill Gilbert da Business Insider, lá são mostradas algumas informações do que seriam grupos de defesa de direitos, com presença de um bom número de advogados capacitados para lidar com os obstáculos recorrentes nesse meio conflituoso. Eles se identificam como parte de uma organização chamada Game Workers Unite. Essa ONG possui um site próprio com informações sobre seus objetivos, conquistas, métodos, quem faz parte e o que fazer caso mais pessoas queiram se organizar. Também há perfis no Twitter da GWU internacional e de outros países, dentre eles no Brasil.
Imagens retiradas do próprio site da Game Workers Unite/GWU.
Há grandes obstáculos nessa luta, um deles citado em outro trecho do artigo The Professional Identity of Gameworkers de Deuze, Martin e Allen, que não pode ser deixado de fora. Fala sobre a intensificação da indústria de games (presente também em outros setores industriais) no que se refere à valorização da flexibilização trabalhista. A negociação direta empregador X empregado de qualquer benefício profissional, e as redes de contato interno como uma das poucas formas de aquisição e manutenção de vagas de trabalho nesses locais, segundo o artigo.
Esse comportamento é um esforço de defesa corporativo para que as coisas permaneçam como estão e que acabam consequentemente freando parte dos avanços da luta contra situações inaceitáveis de trabalho.
Conclusão
Então mais grupos como a GWU precisam ser organizados, para não só combater o crunch em si, mas tudo que está ligado a ele como a intolerância de gênero, raça e sexualidade, que ainda é muito forte, e aparenta crescer à medida que estes indivíduos minoritários começam a cada vez mais participar deste meio gamer. E essa é uma das funções do site Garota no Controle, que ao trazer info especializada em games e no que está por trás desta categoria, traz juntamente os holofotes para as mulheres, e assim aproveitamos para puxar a corrente que trará junto todos os grupos diferenciados não-binários, para que possamos construir uma comunidade mais inclusiva, harmônica, progressivamente livre do ódio, e que no fim, reste só aquilo que nós tanto amamos: jogar videogames.