As ambições de um novo gênero
Após muitos comentários do que viria a ser o novo trabalho de Hideo Kojima, Death Stranding, poucos meses antes da pandemia da COVID-19, foi lançado em 8 de novembro de 2019. Muito embora meu primeiro contato com o jogo só ocorresse em abril, não permiti que as críticas iniciais afetassem minhas experiências, as quais descreverei aqui.
Se por um lado muitas pessoas (eu incluso) foram tocadas pelas mensagens do jogo, outras estavam bem decepcionadas com o “potencial desperdiçado”. Seja como for, preciso ser honesto antes de prosseguir com qualquer ideia. Death Stranding é um videogame estranho, do tipo que normalmente associamos ao Japão. É diferente, mas de fato influenciou positivamente minha percepção de vida.
Por isso, definir o que é Death Stranding pode ser complexo, da mesma forma com que foi com Metal Gear, obra-prima icônica de Hideo. Esses primeiros jogos de Kojima foram considerados durante muito tempo pertencentes ao gênero de ação, já que o stealth ainda não existia como conceito. Esse efeito se repetiu com Death Stranding, que caiu sob os termos de aventura, shooter, e até fighting game em alguns momentos. Entretanto, para explicar corretamente, surge o gênero inaugurado pelo próprio jogo: stranding game, onde os jogadores cooperam sem necessariamente jogarem juntos. Dessa forma, pode se dizer que Death Stranding é um single player massivo online, o comparando com um MMO.
Ainda assim, tudo isso parece pouco para definir um projeto tão ambicioso vindo da Kojima Productions. Pois, para compreendê-lo, é preciso responder uma simples pergunta. Do que se trata Death Stranding?
A estranha maré de Death Stranding, o que diferencia essa obra?
No universo do jogo, um evento chamado Death Stranding gerou diversas explosões ao redor do mundo, principalmente nos Estados Unidos. Nesse meio tempo, a linha entre a vida e a morte se misturou, permitindo seres conhecidos como EPs invadirem o mundo dos vivos. O jogador assume o protagonista Sam Porter Bridges, interpretado por Norman Reedus, ator conhecido pelo papel de Daryl Dixon na série The Walking Dead. A princípio, pouco sabemos sobre Sam, mas com o desenrolar das exposições e apresentações da trama, percebemos uma comunicação natural entre as personagens e seu(s) mundo(s).
Por exemplo, o Death Stranding impediu a comunicação e transformou a população sobrevivente em preppers, termo do inglês que se refere a “preparação” e associado ao costume das pessoas fugirem para bunkers a fim de sobreviver. Por consequência, o jogador deve atravessar os Estados Unidos, fazendo entregas e reconstruindo os laços da humanidade. Mas, qual a melhor forma de se fazer isso? Como gerar conexões humanas de maneira natural? É óbvio, através de um game design inclusivo onde jogadores cooperam entre si sem nem ao menos perceberem. Em Death Stranding, não há uma hierarquia de colaboração, fazemos parte de uma estranha maré composta por vários jogadores, contudo, não nos sentimos obrigados a ajudar os outros, pois isso ocorre de maneira natural e divertida.
Podemos construir diversos veículos, armas, e todo tipo de ferramentas, essas que podem (e devem) ser utilizadas por outros jogadores, com isso, criamos uma enorme rede de cooperação. Como resultado dessa mecânica, não construímos laços apenas com NPCs que se parecem humanos, mas também com pessoas de verdade, feitas de corpo e alma.
A fórmula de Kojima e a estética musical
Semelhantemente à Metal Gear, as primeiras horas de Death Stranding apresentam a fórmula já conhecida pelos fãs de Hideo Kojima. Exposição de cenários reais que demonstram a ascensão da tecnologia recente, uma trilha sonora única, e por fim, cutscenes longas, dignas de cinema. Preparem a pipoca!
Sendo assim, a abertura é acompanhada da música Don’t Be So Serious, da banda islandesa Low Roar. Nesse momento somos abraçados por uma estranha sensação de solidão. Quando Kojima conheceu o grupo em uma viagem que fez a Islândia, se apaixonou completamente pelas canções que nos acompanharão durante todo o jogo. Certamente, boa parte da estética da obra é composta pela trilha sonora, feita por bandas como Bring Me The Horizon, Silent Poets, e o cantor Gen Hoshino.
Porém, ainda assim, apenas a música não seria capaz de manter nossos sentimentos perante o mundo de Death Stranding, como também a estética naturalmente pessimista do universo: a maioria das personagens encontram-se desiludidas, inclusive o próprio Sam.
Os Estados Unidos em ruínas começa a ser esquecido, enquanto terroristas separatistas dominam rotas importantes a fim de impedir entregas. A população, por sua vez, nega a colaboração para o futuro da humanidade e quando olhamos ao redor dos magníficos cenários, tudo o que se vê é a morte se proliferando na forma de chuva temporal, um tipo de precipitação que envelhece e deteriora precocemente tudo o que toca, vivo ou não vivo.
Lágrimas na chuva
Nas regiões de chuva temporal, as EPs se manifestam com o propósito de trazer Sam para o outro lado da vida. É possível perceber a coloração escura quando se trata desse tipo de inimigo. Isso se dá pelo “quiralium”, material estranho que surgiu no mundo após os eventos do Death Stranding.
Esse elemento químico fictício desencadeia um tipo de alergia em Sam e nas outras personagens, que ao sofrerem com o efeito, choram de maneira involuntária, assim demonstrando a fragilidade de nossos protagonistas. Sam é como nós, pessoas nada heroicas e sem esperança em tempos sombrios, causados tanto pelo Death Stranding como pela COVID-19.
A experiência de jogar isolado
Convencendo preppers a se juntarem a causa da UCA (Cidades Unidas da América), recebemos “joinhas” que simbolizam o bom trabalho do jogador. Também é possível presentear outros jogadores com esse sistema (você não gasta sua pontuação para fazer isso), assim também agradecendo por uma ferramenta ou até mesmo por um cogumelo produzido a partir da urina de outros Sams!
Não é possível dar feedback negativo em Death Stranding, pois como dito por Kojima em uma entrevista: “A origem da palavra comunicação é se importar com os outros. A tecnologia e a internet meio que nos levou para o caminho errado. Então, em Death Stranding, com as conexões indiretas que o jogador faz, eu quero que eles repensem o que é comunicação, e como pensar sobre os outros”.
Portanto, devo dizer, me conectar com jogadores de diversos países, lembrar de seus nicknames e me sentir grato pela extrema colaboração foram experiências muito necessárias para que eu, no começo da quarentena, não me sentisse tão sozinho.
Death Stranding inclusive foi responsável por instigar minha mãe, uma senhora que não teve tanto contato com os videogames. Lembro-me de responder perguntas como: Que bicho é esse!? Cadê o bebê? Você vai fugir ou entregar essa carga? Dessa forma, a obra de Kojima se apresenta não apenas como um jogo digital que atinge os jovens, mas como um documento histórico de nossa atualidade, que atingiu outros públicos através do cinema, música, fotografia, e até mesmo literatura.
Não é APENAS um simulador de andar?
Provavelmente esse é o tipo de comentário maldoso que vemos por toda a internet, ainda que muitos jogadores debatam esse tema com respeito e seriedade. Não gostar de uma obra (ainda mais uma tão estranha) é completamente normal. Todos temos um jogo que não conseguimos sentar na cadeira e desfrutar, por mais querido que seja. Death Stranding é esse jogo para muitas pessoas.
Entretanto, considerá-lo um walking-simulator a fim de ofender a obra é uma concepção no mínimo errada. Afinal, diversas criações do gênero como Gone Home (2013), Firewatch (2016) e What Remains of Edith Finch (2017) se mostram jogos incríveis. Ainda assim, para mim e muitos outros, Death Stranding surpreendentemente não se encaixa no gênero. Andar no jogo de Kojima é uma mecânica realista, onde Sam possuí um centro de gravidade funcional. Além disso, utilizando obstáculos como inimigos diversos e terrenos danificados, Death Stranding se difere completamente dos jogos do gênero que usam o caminhar com a finalidade exclusiva de contar uma história, e mesmo se fosse um simulador de andar, ainda não seria APENAS isso.
Um “joinha” para você, leitor
Seja como for, nesse curto tempo que passamos juntos, recomendo a você que jogue Death Stranding. Por mais que reconheça seus defeitos, não deixa de ser o meu jogo favorito e o de muitos outros. No final do jogo, minha mãe e eu estávamos chorando na frente da TV conforme fazíamos nossa última entrega. São poucas as obras que vencem as limitações do próprio gênero, e Death Stranding é referência nesse quesito.
Em conclusão, a lição que deixo para vocês com o que aprendi em minha experiência, é que precisamos repensar nossos métodos de nos relacionar. Trabalhando nossos vínculos e buscando o original significado da palavra comunicação: se importar com os outros e seus sentimentos.
Mesmo tendo certo nivel de aversão com obras de teor mais pessimista, especialmente em algo tão “alienigena” e estranho quanto death stranding.
não posso mentir, esse texto me deixou com o hype pra pegar o jogo e dar aquela experimentada, parece ser uma experiência extremamente singular.